Em nossa última colunaafirmamos, com base na Constituição e na cláusula de não-discriminação tributária do GATT/1994, a invalidade do adicional de Cofins-Importação exigido dos produtos sujeitos, no plano interno, à contribuição sobre a receita substitutiva da incidente sobre a folha.
O tema merece aprofundamento quanto à regra convencional, já que o efeito direito do GATT/1947 e dos tratados resultantes da Rodada do Uruguai, que deu origem à Organização Mundial do Comércio (GATT/1994, Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias, entre outros) — assim entendida a possibilidade de sua invocação pelo particular e de sua aplicação pelo juiz nacional para contrastar uma lei interna que os contrarie — suscita discussões no Direito Comparado.
O mesmo não ocorre no Brasil, onde a jurisprudência adota sem hesitação a premissa do efeito direto, como se nota das Súmulas 575[1] do STF e 20[2] e 71[3] do STJ, entre outras.
Tampouco a doutrina tributária se preocupa com o tema. Convicta do efeito direto dos tratados, dedica o melhor das suas energias ao debate da sua posição hierárquica na ordem jurídica nacional.
Todavia, notável artigo publicado recentemente propõe uma nova abordagem para a questão, baseada no texto dos tratados da OMC, que ao ver do autor negaria toda possibilidade de efeito direto[4]. Influenciado pela prática dos grandes atores do comércio internacional, e sobretudo pela jurisprudência da Corte de Justiça da União Europeia, o autor sustenta que:
i) a intervenção judiciária, tendendo a anular ab origine a regra contrária ao tratado, é incompatível com o Acordo sobre a Solução de Controvérsias da OMC, que (a) garante ao Estado infrator, exprimindo-se pelos seus poderes políticos, a opção de manter aquela regra, desde que pague compensações ou aceite represálias; e (b) não atribui efeitos retroativos às decisões dos órgãos de solução de controvérsias;
ii) os tratados da OMC não reconhecem direitos aos particulares, mas apenas aos Estados, que podem entrar em acordo para que as perdas sofridas por um país no setor A sejam compensadas pela atribuição de vantagens a um setor B, sem considerar a situação individual dos integrantes do primeiro;
iii) a recusa de efeito direto pelas maiores economias do globo desaconselha a adoção do princípio no Brasil (falta de reciprocidade), sob pena de uma superproteção dos interesses estrangeiros em nosso território contra uma proteção insuficiente dos interesses brasileiros no exterior.
Como o valor dos tratados na ordem jurídica de cada país é uma questão de Direito Constitucional positivo, a análise deve partir da Constituição de 1988.
Os tratados na Constituição brasileira
Para além da polêmica doutrinária, o STF considera que a Carta de 1988 consagra um “dualismo moderado”, no sentido de que os tratados, ainda que perfeitos na ordem internacional – assinatura, ratificação, referendo e troca ou depósito dos instrumentos de ratificação –, e portanto aptos a atrair a responsabilidade internacional do País em caso de inexecução, só têm efeito na ordem interna após publicação em decreto presidencial (promulgação)[5].
Cumprida essa formalidade, contudo, os tratados valem na ordem interna como tais (efeito direto), e não como uma inexistente lei de conversão, o que decorre, entre outros, (i) do artigo 5º, parágrafo 2º, que refere os tratados como fontes de direitos e garantias individuais; (ii) do artigo 109, inciso III, que reserva à Justiça Federal o julgamento das causas fundadas em tratados; (iii) do artigo 105, inciso III, alínea a, que prevê recurso especial contra os acórdãos dos tribunais de apelação que contrariem lei federal ou tratado; e (iv) do artigo 102, inciso III, alínea b, que prevê recurso extraordinário contra as decisões finais que declarem a inconstitucionalidade de lei federal ou tratado.
Questão independente é a da hierarquia dos tratados face às leis internas. No Brasil, Estado federal, a questão se desdobra, respeitando de um lado às leis federais, e de outro às estaduais e municipais.
O STF afirma que estas últimas se submetem aos tratados, e isso mesmo no campo tributário, malgrado a regra constitucional que proíbe a União de conceder isenções de tributos locais (artigo 151, inciso III).
A explicação reside no duplo caráter da União, que ora age como ordem jurídica interna parcial, com status idêntico ao dos estados e municípios, ora como representante da República Federativa do Brasil — o único sujeito de Direito das Gentes – perante a sociedade internacional, por exemplo ao firmar tratados. A vedação, conclui o STF, vale apenas no primeiro contexto, não obstando a ordem jurídica total (a República, formada da união indissolúvel dos estados e municípios — Constituição, artigo 1º) de prevalecer sobre as partes[6].
Paradoxalmente, visto que a União também é uma ordem jurídica parcial, a conclusão não se aplica às leis federais, às quais o STF autoriza de forma geral o treaty override[7]. Ao criticarmos esta posição, aderindo à doutrina majoritária, retratamo-nos do entendimento sustentado em obra anterior[8].
Aqui pode-se pensar no artigo 98 do Código Tributário Nacional, a teor do qual os tratados “serão observados pela legislação” — mesmo federal — “que lhes sobrevenha”. Porém, a sua validade resta controvertida, havendo no STF obter dicta favoráveis, fundados na competência do legislador para fixar normas gerais em determinados matérias de Direito Tributário (Constituição, artigo 146, inciso III)[9], mas também contrários, baseados na afirmação de que a hierarquia das normas só pode ser definida pela própria Constituição[10].
Por fim, registre-se que desde a Emenda Constitucional 45/2004 os tratados internacionais sobre direitos humanos aprovados na forma e pelo quórum das emendas constitucionais adquirem o nível destas.
As regras tributárias do GATT e do ASMC
Superados os obstáculos constitucionais — inexistentes no Brasil — e a eventual ordem em contrário do legislador, onde isto seja possível (ver o caso americano abaixo), o debate sobre o efeito direito do direito convencional não se faz considerando-se o tratado em bloco, mas regra por regra[11].
Assim, focaremos aqui o princípio de não-discriminação tributária do artigo III.2 do GATT/1947 e 1994[12] e a vedação aos subsídios tributários[13] ligados à utilização de produtos nacionais de preferência a importados do artigo 3.1, alínea b, do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias[14].
Note-se de saída que a falta absoluta de efeito direito dos tratados da OMC nos EUA não decorre da Constituição — o efeito direto é, ao contrário, a regra geral definida pela Supremacy Clause[15] — ou a uma análise profunda do seu texto. Deve-se, isso sim, ao exercício pelo Congresso do seu poder de suprimir, através da lei de implementação, tal eficácia a um tratado que dela seja revestido[16]. Foi assim que o artigo 102 do Uruguay Round Agreements Act previu que, à exceção do governo central – quanto às ações ou omissões das autoridades federais, às leis dos Estados-membros e às aplicações destas últimas — ninguém pode se valer na justiça dos acordos da OMC.
Tanto isso é verdade que, à falta de uma regra similar em relação ao GATT/1947, uma corte californiana reconheceu a auto-aplicabilidade do seu artigo III[17]. Em iguais condições — não existe lei de implementação aqui — um resultado idêntico revela-se possível no Brasil, o que prova a pouca relevância do exemplo americano atual para a análise do tema entre nós.
O mesmo ocorre hoje na Europa, pois é o preâmbulo da decisão do Conselho de Ministros sobre os Acordos de Marrakesh que estabelece que, “por sua natureza, o acordo que institui a Organização Mundial do Comércio, inclusive os seus anexos, não é suscetível de ser invocado diretamente perante as jurisdições comunitárias e dos Estados-membros”, seja por um particular, seja por um Estado-membro (Decisão 800/94/EC de 22.12.94).
A alusão à natureza dos tratados como fundamento da afirmação não nos deve enganar, já que ao tempo do GATT/1947, sem tal imposição, os tribunais nacionais se dividiam sobre a matéria, tendo-se considerado o artigo III como autoaplicável na Itália e ora destituído[18], ora dotado[19] de efeito direto na Alemanha.
É verdade que também naquela época a Corte de Justiça concluiu pela negativa, mas as suas decisões — não-raro relativas a outros artigos: o célebre caso International Fruit, por exemplo, cuida do artigo XI (eliminação geral das restrições quantitativas) — não são necessariamente superiores do ponto de vista técnico, o que exige um aprofundamento da análise.
No primeiro momento, a CJE pôs em evidência a grande fluidez do GATT/1947, cujas regras admitiam incontáveis exceções e cujo sistema de solução de controvérsias tinha cariz essencialmente diplomático (negociação, retaliação e direito de retirada)[20]. Após a criação da OMC, que remediou estas duas fragilidades, a Corte manteve o entendimento anterior, apelando – além do preâmbulo acima referido – (i) à possibilidade residual de inobservância, pelo Estado vencido, da decisão do órgão de solução de controvérsias, desde pague compensações ou aceite retaliações; e (ii) à falta de reciprocidade quanto a efeito direito da parte dos grandes parceiros comerciais da Europa[21].
Ora, o fato de um tratado veicular princípios gerais, cuja tradução exige a livre apreciação dos poderes políticos, não impede que alguns de seus comandos tenham densidade suficiente para ser entendidos e imediatamente aplicados pelo juiz interno. É o caso das regras tributárias aqui consideradas, suficientemente claras em seu conteúdo e que não impõem ao Judiciário uma atuação como legislador positivo, mas a simples anulação das normas internas que as contrariem.
A previsão de resistência do Estado vencido e de sanções para esta situação (compensações e represálias) não diz nada da pretensa natureza política dos tratados da OMC[22], mas ao contrário confirma a sua juridicidade, já que o Direito só se justifica pela possibilidade prática de sua violação. Deveras, qual seria o sentido de uma regra impondo o dever de respirar? E qual poderia ser a pena para um Estado que recalcitre em obedecer à decisão do órgão de solução de controvérsias? A guerra?
A falta de reciprocidade não é, salvo previsão expressa, motivo para que um Estado se isente de cumprir os seus acordos internacionais, como o sublinha a própria CJE em casos alheios à OMC[23]. O remédio consiste em exigir o comportamento devido pela outra parte ou denunciar o tratado.
Finalmente, para retomar os argumentos de Marcelo Zandavali, os fatos de que a solução negociada pelos Estados possa fazer abstração de situações individuais e de que a decisão do órgão de solução de controvérsias seja privada de efeito retroativo não significam, para nós, que o particular seja impedido de fazer valer as disposições do tratado perante o Judiciário, a fim de ver restaurado o status quo ante.
De saída porque a Constituição brasileira garante que nenhuma lesão ou ameaça a direito será excluída à apreciação do Judiciário (artigo 5º, inciso XXXV), o que afasta, para as regras convencionais dotadas de densidade jurídica (justiciability), a doutrina dos atos políticos.
Depois porque a existência de um mecanismo convencional para a solução de disputas e a possibilidade de proteção diplomática, com todas as suas limitações, nunca foram compreendidas como excludentes do recurso aos tribunais domésticos, onde isto seja possível.
Enfim, porque é errôneo falar de forma maniqueísta em interesses nacionais contrapostos a interesses estrangeiros, não deixando de ser nacional o interesse de um importador aqui residente de comprar os seus produtos sem a carga tributária adicional inaplicável aos similares produzidos internamente.
Antes de concluir, vale notar que – salvo talvez para os tratados de direitos humanos com status de emenda constitucional – não existe controle concentrado de convencionalidade, tendente à anulação erga omnes da regra interna. Como este se faz sempre na via incidental, caso a caso, perde força a tese que associa o efeito direto dos tratados a uma grave usurpação das competências dos poderes políticos.
Filosoficamente, superados os aspectos dogmáticos, temos que a discussão sobre o efeito direto das regras de não-discriminação e de vedação aos subsídios tributários contrapõe os juristas que optam pelo lado dos fautores das regras, os detentores do poder (análise ex parte principis) àqueles que tomam a posição dos destinatários das regras, os particulares (análise ex parte populi).
Face ao compromisso da Constituição de 1988 com os direitos individuais, não hesitamos em aderir à segunda perspectiva, por razões que são, elas também, de direito positivo.
[1] “À mercadoria importada de país signatário do GATT, ou membro da ALALC, estende-se a isenção do imposto de circulação de mercadorias concedida a similar nacional.”
[2] “A mercadoria importada de país signatário do GATT é isenta do ICM, quando contemplado com esse favor o similar nacional.”
[3] “O bacalhau importado de país signatário do GATT é isento do ICM.”
A súmula só valeu enquanto vigoraram isenções estaduais para o produto.
[4] Marcelo Freiberger Zandavali. O Juiz Brasileiro e as Normas da OMC – Brazilian Judges and WTO Rules. Revista CEJ nº 61, 2013, p. 47-58.
[8] Igor Mauler Santiago. Direito Tributário Internacional: Métodos de Solução dos Conflitos. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 37-50.
[10] Votos dos Ministros Cunha Peixoto, Cordeiro Guerra e Rodrigues Alckmin no RE 80.004/SE (STF, Pleno, DJ 29.12.77). Voto do Ministro Moreira Alves na ADI 1.600/UF (STF, Pleno, DJ 20.06.2003).
[11] Carlos Manuel Vázquez. The Four Doctrines of Self-Executing Treaties. Georgetown Public Law and Legal Theory Research Paper nº 12-101, 1995, p. 709. Thomas Cotier e Krista Nadakavukaren Schefer. The Relationship Between World Trade Organization Law, National and Regional Law. Oxford Journal of International Economic Law, 1998, p. 92.
[12] “III.2. Os produtos do território de qualquer Parte Contratante, importados por outra Parte Contratante, não estão sujeitos, direta ou indiretamente, a impostos ou outros tributos internos de qualquer espécie superiores aos que incidem, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais. (…)”
[13] “Artigo 1 – Definição de subsídio
1. Para os fins deste Acordo, considerar-se-á a ocorrência de subsídio quando:
a) 1) haja contribuição financeira por um governo ou órgão público no interior do território de um Membro (denominado a partir daqui ‘governo’), i.e.:
(…)
(ii) quando receitas públicas devidas são perdoadas ou deixam de ser recolhidas (por exemplo, incentivos fiscais tais como bonificações fiscais).”
1. Com exceção do disposto no Acordo sobre Agricultura, serão proibidos os seguintes subsídios, conforme definidos no Artigo 1:
(…)
b) subsídios vinculados de fato ou de direito ao uso preferencial de produtos nacionais em detrimento de produtos estrangeiros, quer individualmente, quer como parte de um conjunto de condições.”
[17] Paul Kapteyn. The Domestic Law Effect of Rules of International Law Within the European Community System of Law and the Question of the Self-Executing Character of GATT Rules. International Lawyer ABA, 1974, p. 78.
[19] Meinhard Hilf. The Role of International Courts in International Trade Relations. Michigan Journal of International Law, 1997-1998, p. 344.