Revalorização do artigo 52, inciso x, da Constituição

Primeiro no artigo “Controle de constitucionalidade: evolução brasileira determinada pela falta do stare decisis”, publicado na edição 920 da Revista dos Tribunais (páginas 133-149), depois na edição de 25 de maio de 2013 do Observatório Constitucional (http://www.conjur.com.br/2013-mai-25/observatorio-constitucional-reclamacao-4335-busca-stare-decisis), discorri sobre a reiterada busca – no controle de constitucionalidade brasileiro – de sucedâneos, pela via normativa, ao stare decisis, “elemento de funcionalidade e coerência decisórias existente na experiência do common law americano, mas que não veio ao Direito brasileiro por ocasião do transplante (ou cópia) do modelo americano”.

No julgamento da Reclamação 4.335-5/AC, o Supremo Tribunal Federal considerou a tese de reconhecer eficácia erga omnes a decisões em controle difuso independentemente de o Senado Federal haver exercido a sua competência privativa de suspender a lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo, a teor do artigo 52, inciso X, da Constituição. Caso acolhida, ter-se-ia mais um sucedâneo ao stare decisis (mas, aqui, por via jurisprudencial, em uma delicada – e polêmica – mutação constitucional).

Após longo período de maturação, o assunto foi resolvido contra a referida tese. A tendência expansiva dos efeitos de decisões no controle difuso foi reconhecida, mas, no caso, a Reclamação foi conhecida e deferida, na prática, simplesmente, porque houve a superveniência de uma súmula vinculante (a de n. 26) sobre o assunto de fundo agitado na Reclamação.

Com isso, é de supor que ocorra uma revalorização do artigo 52, inciso X, da Constituição, seja do ponto de vista teórico, seja do ponto de vista prático.

A norma dele constante foi introduzida no Direito Constitucional brasileiro pela Constituição de 1934. Foi um primeiro sucedâneo, pela via normativa, ao stare decisis.

Daí decorreram diversas questões, muito bem enfrentadas ao longo do tempo, seja pela academia, seja pelo Supremo Tribunal Federal, seja – é claro – pelo próprio Senado Federal. Em sede doutrinaria, vale destacar trabalho clássico de Paulo Brossard de Souza Pinto, “O Senado e as leis inconstitucionais”, publicado na Revista de Informação Legislativa n. 50, bem como, o artigo de Sérgio Resende de Barros, “O Senado e o controle de constitucionalidade”, disponível na Internet (http://www.srbarros.com.br/pt/o-senado-e-o-controle-de-constitucionalidade.cont).

Estabeleceu-se polêmica forte e interessante sobre a facultatividade ou obrigatoriedade de o Senado Federal suspender a lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. A doutrina dividiu-se no ponto. Prevaleceu – e assim entende-se até hoje – que o Senado tem a faculdade de suspender ou não a lei declarada inconstitucional pelo Supremo. A obrigatoriedade não seria compatível com a dignidade institucional própria a uma alta Casa legislativa que, do contrário, ficaria reduzida a um mero órgão carimbador das decisões do Supremo (a propósito, o voto do ministro Aliomar Baleeiro no MS n. 16.512/DF, relator o ministro Oswaldo Trigueiro, julgado em 25 de maio de 1966). Ademais, a decisão do Supremo, no controle difuso, não é afetada em sua autoridade pela eventual decisão senatorial de não suspender a lei declarada inconstitucional: remanescerá, no mínimo, o efeito que lhe é próprio: o efeito inter partes.

Outra dúvida é relativa à repercussão da decisão no tempo: ex nunc ou ex tunc? Com efeito, o Senado, no exercício de sua competência privativa inscrita no artigo 52, inciso X, da Constituição, não revoga a lei ab initio – até porque isso só poderia decorrer do concurso de vontades das duas Casas parlamentares e da Presidência da República – mas, sim, (apenas) suspende-lhe a eficácia. Disso decorre eficácia temporal tão-só prospectiva, pro futuro, ou seja, ex nunc. No entanto, nada impede que o Poder Público – diante da generalidade própria à manifestação senatorial – reconheça repercussão ex tunc não só às partes do respectivo controle difuso, mas também à toda sociedade. É o que faz – de modo muito correto, leal e honesto – o parágrafo 2o do artigo 1o do Decreto 2.346, de 10 de outubro de 1997 (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2346.htm).

Também houve alguma controvérsia acerca de que espécies de decisões de inconstitucionalidade poderiam ser objeto da suspensão senatorial: apenas as típicas e clássicas, com redução de texto, ou também aquelas sem redução de texto. A prática do Senado Federal responde à questão. Veja-se, por exemplo, a Resolução 52 de 2005: “É parcialmente suspensa, sem redução de texto, a execução do art. 11 da Medida Provisória Federal nº 2.225-45, de 4 de junho de 2001, ficando excluído do seu alcance as hipóteses em que o servidor se recuse, explícita ou tacitamente, a aceitar o parcelamento previsto no dispositivo, em virtude de declaração de inconstitucionalidade em decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, nos autos do Recurso Extraordinário nº 401.436-0 – Goiás.”

Claro, a suspensão senatorial não cabe em sede de controle concentrado, uma vez que as ações diretas já têm – elas próprias – eficácia erga omnes. Do contrário, na fórmula muito bem empregada pelo mMinistro Moreira Alves, a Corte transformar-se-ia em um mero “clube lítero-poético-recreativo”, cuja decisão em sede de controle concentrado nada valeria, porque ficaria inteiramente dependente do acolhimento senatorial. Note-se: há, aqui, absoluta coerência com o entendimento que reconhece a facultatividade de o Senado suspender ou não a lei declarada inconstitucional pelo Supremo. Ambos são órgãos da maior envergadura institucional e, por isso mesmo, não podem ser submetidos ao reboque de outro poder. Ademais, diferentemente do controle difuso, no controle concentrado há uma única questão a decidir: a correção constitucional da própria lei.

Outro dado importante, em geral não percebido, é relativo à origem das leis ou atos normativos sujeitos à suspensão senatorial. Ora, como o Supremo Tribunal Federal, no controle difuso, controla a constitucionalidade de leis e atos normativos federais, estaduais e municipais em face da Constituição da República, e considerando que o Senado Federal é a Casa de representação dos Estados – ou, mais propriamente, dos entes federados brasileiros – a suspensão pode atingir leis e atos normativos federais, estaduais e municipais. Na prática, são numerosos e recorrentes os exemplos de leis e atos normativos federais, estaduais e municipais suspensos pelo Senado no exercício da sua competência privativa constante do artigo 52, inciso X, da Constituição.

Vale registrar: é a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, no uso de competência a ela delegada pelo Plenário da Casa, que vota projetos de resolução acerca do artigo 52, inciso X, da Constituição (sem prejuízo de recurso ao Plenário na forma do inciso I do parágrafo 2o do artigo 58 da Constituição).

Enfim, a competência privativa do Senado Federal constante do artigo 52, inciso X, da Constituição suscita esses e muitos outros assuntos para pesquisa, todos com evidente repercussão prática. Ademais, implica mecânica que ajuda a compor a teia protetiva contra inconstitucionalidades, própria ao Direito brasileiro.

José Levi Mello do Amaral Júnior é professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP e do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito do UniCEUB. Procurador da Fazenda Nacional.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 20 de abril de 2014

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