Alexy, seus defensores e a filosofia como lógica ornamental

A coluna desta semana é articulada com um propósito especifico: participar do debate que foi aberto pelo artigo, publicado neste mesmo Diário de Classe, assinado por André Karam Trindade e Lenio Luiz Streck, que procurava discutir problemas da teoria alexyana de concretização dos direitos (clique aqui). Posteriormente, Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno e Júlio Aguiar de Oliveira ofereceram um contraponto às posições firmadas por André e Lenio com o objetivo de defender a teoria de Alexy daquilo que eles consideraram “incorreções” (sic) nas objeções formuladas (clique aqui). A principal delas, talvez, tenha origem no provocativo título da coluna de André e Lenio que apontava para os riscos de uma teoria do direito sem filosofia. Reagindo a isso, Travessoni e Aguiar encerraram suas considerações afirmando que essa provocação tem origem em uma concepção estreita de filosofia, algo que tornaria a crítica que André e Lenio pretenderam realizar carente de sentido.

É importante registrar, logo de início, que as considerações aqui lançadas têm o único e exclusivo objetivo de contribuir para o debate instalado. A pesquisa jurídica no Brasil e os debates sobre teoria do direito, no mais das vezes, permanecem restritos aos espaços universitários no interior dos quais eles foram/são construídos. Por isso, é alvissareiro ter a oportunidade de realizar um diálogo que transcenda os muros da universidade, atingindo uma esfera maior do espaço público. Como hermeneutas convictos, nutrimos um sentimento de “amor pelo diálogo”. É esse o espírito que nos anima a participar desse importante debate.

Uma nota de esclarecimento
Todavia, antes de ingressarmos nas questões de mérito, é importante considerar alguns aspectos a título de preliminares. A coluna de André e Lenio não representa um ponto de partida da discussão. Ela representa, ao contrário, uma amostra do resultado de um projeto de pesquisa que se estendeu por anos (mais precisamente quatro) e que foi desenvolvido no ambiente do programa de pós-graduação em direito da Unisinos-RS. Tal projeto teve como título O constitucionalismo entre a teoria da argumentação e a hermenêutica, e envolveu uma plêiade de formas de abordagem e estratégias de pesquisa ao longo de sua vigência. Foram realizados inúmeros seminários e colóquios (contando todas as vezes com participação de professores de outras universidades, brasileiras e estrangeiras) e produzidas dezenas de teses e dissertações, muitas das quais se encontram publicadas na forma de livro. Os seus resultados estão sustentados, de forma mais pormenorizada, em livros como Verdade e Consenso (especialmente na 3 ed. E seguintes) e Hermenêutica Jurídica e(m) Crise (7 ed. e seguintes), os dois de autoria de Lenio Streck.

O projeto envolveu muita gente. Inclusive estes dois escribas.

Portanto, uma crítica que se pretenda séria e rigorosa deveria começar analisando os argumentos lançados nessas obras e que expõem, de forma mais fundamentada, a posição apresentada por Lenio e André na coluna que deu causa a este diálogo.

Dito isso, passemos, então, à objeção da objeção. Ou seja, os motivos pelos quais a crítica de Alexandre e Júlio não pode ser considerada correta. 

Os desafios e a importância de uma posição filosófica
Vamos começar pelo final. Travessoni e Aguiar atribuem uma falta de sentido à crítica que André e Lenio fazem à proposta de Alexy porque, segundo eles, a primeira estaria assentada em uma concepção estreita de filosofia.

Aqui, faz-se necessário operar um ajuste conceitual: há uma diferença entre professar uma “concepção estreita de filosofia” e afirmar uma posição filosófica. No caso, as análises realizadas por Lenio e André estão assentadas em uma posição filosófica. Para firmar uma posição filosófica recorre-se à história da filosofia, confrontam-se paradigmas filosóficos e, ao final, procura-se defender aquele que se apresenta com a melhor possibilidade de resolver os problemas filosóficos centrais.

A acusação de reducionismo, aqui, não é válida. Até porque, seria de se perguntar, o que é uma “concepção ampla” (sic) de filosofia? Uma concepção que fique vagando pela história da filosofia sem realizar uma aderência a um paradigma filosófico? Algo do tipo: toma-se um pouquinho do que é bom de cada autor e, depois, a partir de uma mixagem, cria-se um posição melhor do que cada uma era individualmente? Mas como isso pode ser realizado? Como aparar as arestas, contradições e as diferenças – profundas – que existem entre autores de tradições filosóficas distintas? Ora, não se produzem resultados interessantes, que permitam falar em inovação na filosofia ou mesmo para a teoria do direito, com esse tipo de concepção eclética da filosofia. Ao contrário, é necessário que a reflexão possa produzir uma matriz de racionalidade capaz de oferecer um quadro conceitual que servirá tanto para ler a história da filosofia quanto para analisar autores, conceitos, posições, etc..

Como afirma Ernildo Stein: “o fato de o debate filosófico depender de sua inserção na História da Filosofía faz com que o conjunto de argumentações termine se realizando num quadro temático e conceitual que podemos chamar de paradigma filosófico. É esse que permite o surgimento de preferências no desenvolvimento do espaço de razões. Naturalmente, o paradigma filosófico apresenta certas peculiaridades  que permitem sua identificação como espaço de inovação. Assim, temos uma matriz de racionalidade com o seu modo específico de olhar o método, a teoria da racionalidade, a teoria da verdade, o quadro conceitual e o espaço referencial teórico.”[1]

No âmbito das reflexões desenvolvidas por André e Lenio, movimentamo-nos em uma posição filosófica definida, depois de uma exaustiva construção, que apresenta um quadro conceitual composto a partir daquilo que podemos nomear de paradigma hermenêutico permeado pela teoria integrativa do direito de origem dworkiana. Vale frisar: não se trata de reducionismo filosófico, mas, sim de afirmação de uma posição filosófica.

De plano, seria o caso de se perguntar: qual é a posição filosófica dos autores. Se quisermos utilizar a linguagem de um dos maiores filósofos contemporâneos – Lorenz Puntel[2] – poderíamos, também, formular a pergunta do seguinte modo: qual o quadro referencial teórico que preside as reflexões dos autores?

Talvez, a resposta para estas perguntas seja a seguinte: o quadro referencial é o mesmo que o de Robert Alexy.

É aí que começamos a ter, de forma mais clara, o significado do propalado “déficit de filosofia” que acometeria a teoria do direito de Robert Alexy. Note-se: não se trata de afirmar que não existe filosofia na obra de Alexy. Trata-se, sim, de perguntar se essa filosofia é uma filosofia de paradigma, uma matriz de racionalidade. Nesse caso, responder afirmativamente a pergunta é algo difícil até para o mais tarimbado e ferrenho defensor de Alexy. Isso porque uma análise profunda dos textos de Alexy, principalmente Teoria da Argumentação Jurídica e Teoria dos Direitos Fundamentais, deixa muito evidente que existe um teor de ecleticismo difícil de ser resolvido, tanto do ponto de vista filosófico quanto epistemológico. Ora, Alexy parece firma-se como um autor que se enquadra dentro da matriz analítica, mas, ao mesmo tempo, tem um débito enorme com o neokantismo de Baden. Um outro elemento, que é referido apenas de passagem por Travessoni e Aguiar e que, nos parece, é um elemento central para compreensão desse “déficit filosófico”, diz respeito aos resquícios de filosofia da consciência que são passíveis de serem encontrados em Alexy, principalmente no que tange à sua aceitação de um certo quociente de discricionariedade na dogmática dos “espaços-quadros”. Qualquer iniciado em filosofia sabe que a analítica se pretende como superadora da filosofia da consciência.[3] Por outro lado, mesmo no nível epistemológico, existe uma série de incongruências nesse sentido. Sua aposta no método analítico da Jurisprudência dos Conceitos e, ao mesmo tempo, a indiscutível origem da ponderação – no âmbito da Jurisprudência dos Interesses – é um capítulo importante desse problema. Ao mesmo tempo, as reminiscências da Jurisprudência dos Valores é forte em sua obra.

Por fim, esse problema, originado das questões relativas à sua matriz de racionalidade, leva a uma outra constatação – desenvolvida longamente por Lenio Streck em seu Verdade e Consenso.[4] Com base em Hilary Putnam, que tematizou a questão dos níveis de racionalidade como racionalidade I e II, mostrando que o nível II é estruturado e que tem uma relação de profundidade com o nível I, estruturante, Streck afirma que a teoria da argumentação e a própria fórmula da ponderação apresentam-se insuficientes do ponto de vista da interpretação do direito porque permanecem apenas no nível de racionalidade II, não alcançando as questões estruturantes, de profundidade, que o paradigma hermenêutico permite acessar. É nesse contexto que se afirma que a ponderação é produto de uma racionalidade de segundo nível: porque ela não tem origem numa dimensão estrutural mais profunda – existencial, poderíamos dizer – mas é simplesmente uma produção lógico-matemática que, como tal, apresenta-se artificialmente como modelo de realização do direito.

O problema interpretativo do direito, para poder escapar das armadilhas da subjetividade, precisa de um ferramental teórico que permita enfrentar essa dimensão de profundidade da racionalidade I. Um ferramental que se ocupe não apenas do estruturado, mas, também, daquilo que é estruturante; dos fatores que se apresentam como constitutivos do mundo e do significado e que estão enraizados em uma dimensão mais profunda da existência.

Alexy e a Hermenêutica
A afirmação de Travessoni e Aguiar de que Alexy teria ido além de Gadamer (e Heidegger), quando procura dar uma conformação analítica ao círculo hermenêutico, é daquelas que faz qualquer cristão ruborescer. Nesse aspecto, os autores demostram uma total ausência de familiaridade com a filosofia hermenêutica e a hermenêutica filosófica. Novamente, isso pode ser debitado em uma aceitação acrítica das interpretações que Alexy oferece para a obra desses filósofos.

Em primeiro lugar, parece haver uma equiparação de projetos filosóficos que são distintos. Entre Heidegger e Gadamer existem diferenças significativas. Não há espaço, nos limites de uma coluna, para explorar essa questão em pormenores. Todavia, é possível perceber um indício de diferença no modo como cada um desses filósofos posicionam a hermenêutica em sua filosofia: para Heidegger a filosofia é hermenêutica (vale dizer, o modo como se desenvolve a reflexão filosófica é hermenêutico porque implica sempre uma autocompreensão do ente que questiona o ser, no caso o Dasein). Já para Gadamer a hermenêutica é filosófica porque, entre outras coisas, o problema hermenêutico é dotado de uma universalidade que não é meramente procedimental. Ou seja, o acontecimento da compreensão é o mesmo independentemente da área em que se movimente o interprete: sejam as artes, a história ou o direito.

Nesse aspecto, a análise de Robert Alexy sobre a interpretação é antitética com relação à de Gadamer (nem vamos aqui discutir a distância lunar que separa a posição de Alexy daquela defendida por Heidegger). Em primeiro lugar, Alexy mantém uma crença fiel na dedução e na ideia de subsunção (herança da Jurisprudência dos Conceitos?). A hermenêutica gadameriana é refratária a dedutivos e subsunções. Por outro lado, não há como falar em “aceitação” (sic) do círculo hermenêutico nesse contexto. Pelo menos não no modo como trabalhado por Gadamer (lembrando que o círculo hermenêutico não foi criado por Heidegger ou Gadamer. Sua origem remonta à velha lógica da relação todo e parte. Milenar no âmbito da teoria da interpretação. A diferença é que, a partir de Heidegger, o círculo hermenêutico passou a assumir uma dimensão existencial). Por outro lado, o círculo hermenêutico, nos termos da filosofia heideggeriana e gadameriana, que são expressamente mencionadas por Alexy quando trata da matéria, não é algo que se “aceita” (sic). Nós não fazemos o circulo hermenêutico quando empreendemos um projeto interpretativo. Ele acontece independentemente de nosso querer e fazer.

A alegação de insuficiência (sic) do circulo hermenêutico é igualmente improcedente. Falar em um tipo de deficiência analítica, aqui, representa, novamente, desconhecimento com relação à obra de Gadamer. Ora, há paginas e páginas em Verdade e Método sobre a epoché  representada pela suspensão dos pre-juízos. O momento de parada da hermenêutica que deve ser empreendido por todo aquele que leva a sério a interpretação de um texto.

Enfim, entender como insuficiente o círculo hermenêutico representa um mal-entendido com relação ao conceito no modo como articulado no ambiente da filosofia hermenêutica. 

O baixo teor deontológico do conceito de princípio em Alexy
O último ponto a ser considerado com relação às objeções formuladas por Travessoni e Aguiar diz respeito ao problema do caráter deontológico, ou não, dos princípios em Alexy. Ninguém desconhece a afirmação de Alexy de que os princípios são normas e, portanto, possuem uma dimensão deontológica. A pergunta é: o enquadramento dado por sua teoria é suficiente para isso?

Ora, Alexy afirma um conceito semântico de norma – o que representa, nesse aspecto em específico, um recrudescimento com relação ao conceito de norma que prevalece no positivismo kelseniano – e desdobra como espécies desse gênero as regras e os princípios. É amplamente conhecida a crítica de Friedrich Müller ao conceito semântico de norma. Crítica, com a qual, concordamos inteiramente. E qual é o modo de realização, que diferencia regras e princípios em Alexy? A subsunção e a ponderação. Os princípios, como mandados de otimização que devem ser realizados em suas máximas possibilidades, dentro dos limites fáticos e jurídicos que conformam o caso concreto, quando colidem, são realizados por meio da ponderação. Mas, seria de se perguntar: a ponderação resolve, diretamente, o caso? Quem conhece a obra de Alexy sabe que não. A ponderação resolve a colisão de princípios. Em abstrato. O que resolverá o caso será uma regra que, na tradução para o português, aparece como “norma de direito fundamental atribuída”. E será aplicada na forma com que se aplicam as regras, ou seja, por subsunção. Logo, do ponto de vista da interpretação do direito, o que determina mesmo a resposta judicial aos casos que envolvem direitos fundamentais são as regras, aplicadas por subsunção.

Nessa medida, o princípios acabam esvaziados em seu conteúdo normativo. Ficam distante dos casos. E a “abertura” da otimização produz efeitos deletérios, como subteorias do tipo da “reserva do possível”.

Por esse motivo é que se diz que há um déficit deontológico no conceito de princípio com o qual opera Robert Alexy. Vale dizer, no frigir dos ovos, qual o caráter normativo que aparece declarado na teoria? São as armadilhas da semântica das quais Alexy continua prisioneiro. 

À guisa de conclusão
Em suma: formulamos, aqui, uma objeção às objeções oferecidas por Travessoni e Aguiar à coluna publicada neste Diário de Classe por André Karam Trindade e Lenio Luiz Streck.

Isso, basicamente, por três motivos:

I – porque uma posição filosófica não pode ser compreendida como “visão estreita” (sic) de filosofia;

II – porque não é acertado afirmar que Alexy efetuou algo como um “aperfeiçoamento analítico” ao circulo hermenêutico proposto pela filosofia hermenêutica de Gadamer. Isso representa desconsiderar o essencial do que Gadamer escreveu sobre o círculo hermenêutico. No mais, a filosofia hermenêutica demonstrou, cabalmente, que o circulo hermenêutico não é uma opção metodológica do intérprete, mas, sim, um acontecimento que envolve a compreensão.

III – Porque a crítica que os autores fazem ao texto de André e Lenio, sobre uma possível incompreensão da obra de Alexy, presente na afirmação de que os princípios, em sua Teoria dos Direitos Fundamentais, não são deontológicos, não alcança o sentido que se pretende articular. Vale dizer, não interessa o que se apresenta nominalmente na teoria, mas, sim, o seu resultado. Nesse sentido, o resultado se apresenta como um enfraquecimento da dimensão deontológica que reveste os princípios jurídico-constitucionais.

Por fim, reafirmamos nossa disposição para o debate. Trata-se de um lema da hermenêutica. Como já disse Gadamer em uma outra ocasião, mas que cabe perfeitamente para aquilo que aqui queremos mencionar: “A conversação que está em curso subtrai-se a qualquer fixação. Seria um mau hermeneuta aquele que imaginasse poder ou dever ter a última palavra”[5].

 


[1] Stein, Ernildo. Inovação na Filosofia. Ijuí: Unijui, 2011, p. 40.

[2] Cf. Puntel, Lorenz. Estrutura e Ser. Um quadro referencial teórico para um filosofia sistemática. São Leopoldo: Unisinos, 2008, p. 27 e segs.. Na esteira do autor: “a determinação mínimal mas fundamental de filosofia, como entendida neste livro, diz que filosofia é uma atividade teórica, isto é, uma atividade que visa o desenvolvimento e a exposição de teorias. Para que o desenvolvimento e a exposição de uma teoria seja factível, devem ser reconhecidos e cumpridos muitos requisitos específicos. A totalidade dos fatores que preenchem esses requisitos pode ser chamada de quadro referencial, mais precisamente quadro referencial teórico.

[3] Cf. Oliveira, Manfredo Araujo de. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia contemporânea. São Paulo: Loyola, 2001. Cf., também, D’agostini, Franca. Analíticos e Continentais. Tradução de Benno Dischinger. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003.

[4] Cf. Streck, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

[5] GADAMER, Hans-Gerog. Verdade e Método II.2 ed. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 544.

Rafael Tomaz de Oliveira é advogado, mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos e professor universitário.

Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 19 de abril de 2014

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