A Norma Fundamental de Kelsen: Explicando um Conceito Mal Compreendido

Uma das teses pelas quais Kelsen é mais conhecido é a proposição, desde a primeira edição de sua Teoria Pura do Direito (1934), da chamada norma fundamental (Grundnorm). Nessa postagem publicada no blog do Prof. André Coelho ele irá explicar, de maneira objetiva: (1) O que é a norma fundamental e de que modo ela surge na argumentação de Kelsen; (2) quais as funções que a norma fundamental desempenha na concepção kelseniana de Direito; e (3) por que boa parte das críticas que são feitas à noção de norma fundamental partem de uma compreensão equivocada seja de sua natureza seja de suas funções, vejamos:

(1) Uma das premissas básicas de Kelsen é que uma norma não pode ser fundamentada por nenhuma outra coisa que não outra norma. Kelsen tem um argumento negativo e um argumento positivo para isso. O argumento negativo consiste em excluir as outras possibilidades. Para Kelsen, tais possibilidades seriam duas: (a) a norma ser autoevidente, prescindido de fundamentação noutra coisa; (b) a norma ser fundamentada na autoridade de quem a põe. Contra (a), Kelsen argumenta que só poderia haver normas autoevidentes se houvesse uma razão prática, o que, para Kelsen, quer dizer: se houvesse uma razão legisladora, se a razão ditasse normas de conduta para o homem. Porém, segundo Kelsen, a razão é apenas especulativa, quer dizer, apenas torna possível o conhecimento, nada tendo que ver com a ação. Provas de que a razão não é prática, ou seja, não é legisladora são o franco desacordo moral entre os homens e a incapacidade de qualquer sistema moral particular de alcançar um acordo universal. Kelsen conclui que, não havendo uma razão prática, isto é, não fornecendo a razão normas para a ação, nenhuma norma de ação pode ser, à luz da razão, evidente, sendo, portanto, sempe necessário fornecer para cada norma alguma fundamentação noutra coisa que não seu próprio conteúdo. Aliás, Kelsen acrescenta que as normas que parecem evidentes para os homens não o são em razão de seu conteúdo, mas sim devido à aceitação não problemática da autoridade que a pôs (ou seja, não pelo motivo (a), e sim pelo motivo (b)), por exemplo, Deus, um revelador profético, o costume etc. Mas Kelsen também nega que uma norma possa estar fundamentada simplesmente na autoridade de quem a pôs. Isso porque essa autoridade pressupõe a obrigação de obediência, e essa obrigação teria que ser, por sua vez, estabelecida por uma norma. Ou seja, se uma norma N1 estiver fundamentada na autoridade da pessoa P1 que a estabeleceu, a autoridade de P1 requererá, por sua vez, uma norma N2 que atribua às pessoas a obrigação de obedecer a P1. Nesse caso, porém, será N2, e não P1, que dará verdadeiramente o fundamento de validade de N1. Conclusão: Como não existe razão prática, isto é, como a razão humana não é legisladora de normas de conduta, não há normas autoevidentes apenas por força de seu conteúdo; as que se alega serem tais o são, na verdade, devido à aceitação não problemática da autoridade que as pôs; mas toda autoridade também precisa, para ser tal, de uma norma que ordene a obediência a ela, de modo que, seja por uma via, seja por outra, o que fornece fundamento a uma norma é sempre outra norma, e não alguma outra coisa.

Esse é o argumento negativo de Kelsen. Seu argumento positivo para provar que apenas uma norma pode ser fundamento de outra norma parte da distinção entre ser e dever ser. Para Kelsen, essa distinção é ao mesmo tempo intuitiva e ontológica: intuitiva porque é imediatamente claro para nossa consciência que uma coisa ser assim e assim é diferente de essa coisa dever ser assim e assim, e vice-versa, não se podendo de uma concluir a outra; e é ontológica porque Kelsen acredita que ser e dever ser são dois planos distintos de realidade, se não no sentido realista platônico da existência de um “mundo” do dever ser, pelo menos no sentido fenomenológico de que se trata de um aspecto ou dimensão distinta de funcionamento de nossa consciência. Kelsen endossa o argumento humiano da impossibilidade de derivação do dever ser a partir do ser, bem como do ser a partir do dever ser. Para ser menos obscuro, isso quer dizer que Kelsen nega que alguma informação sobre como as coisas são possa, sem mais, permitir a conclusão sobre como as coisas devem ser. O simples fato, por exemplo, de a maioria dos membros de uma assembleia concordar com uma medida x não faz com que automaticamente x deva ser adotada. É assim apenas se houver uma norma segundo a qual as decisões tomadas pela maioria dos membros daquela assembleia devem tornar-se obrigatória para esses membros. O que apoia a obrigatoriedade da medida x não é, então, o fato de sua aprovação por maioria, mas sim a norma que torna esse fato motivo bastante para sua obrigatoriedade. Outra forma de dizer isso é dizer que um fato nunca pode, em si mesmo, dar obrigatoriedade a uma norma, a menos que tal fato esteja dotado de sentido normativo, o qual, por sua vez, terá que ter sido necessariamente atribuído a ele por uma norma. Conclusão: Dada a distinção entre ser e dever ser, um fato nunca pode, em si mesmo, ser fundamento de uma norma, mas pode ser motivo de sua obrigatoriedade apenas na medida que uma norma atribua a ele um sentido normativo particular. Disso se segue que é sempre uma norma, e nunca um fato, que dá validade a outra norma.

Tendo deixado clara essa premissa, Kelsen se apoia nela para chegar à conclusão de que é inevitável assumir a existência de uma norma fundamental. Kelsen raciocina que, se cada norma vigente precisa, para ser válida, estar fundamentada numa norma anterior e superior, então, das duas uma: ou isso leva a um regresso infinito, em que nunca haveria uma primeira norma capaz de fundamentar todas as outras; ou isso levaria em algum momento a uma norma que, não tendo outra anterior e superior que a fundamente, careceria de validade, contaminando, assim, de invalidade toda a sequência de normas que se apoia nela. Regresso infinito ou início arbitrário parecem ser as duas possibilidades que se apresentam, compondo, assim, um dilema que impediria concluir como as normas podem, afinal de contas, ser fundamentadas. Para sair desse dilema é que Kelsen concebe a noção de norma fundamental. De fato, cada norma posta precisa estar fundada numa norma anterior e superior. Contudo, para que não haja um regresso infinito que faça a validade dessas normas cair no vazio, é preciso que exista uma primeira norma que dê fundamento a todas as demais. É essa norma que, segundo o dilema acima, pareceria ter o problema de também precisar de uma norma anterior e superior que a fundamente, sob pena de ser inválida e, assim, contaminar de invalidade todas as demais normas que nela se apoiam. Mas, explica Kelsen, isso só é assim se essa primeira norma for uma norma posta, pois, sendo tal, teria que ter sido posta por alguém, esse alguém tendo, como já vimos acima, que ter autoridade e essa autoridade requerendo, por sua vez, outra norma que a estabeleça. Kelsen, então, argumenta que essa primeira norma não pode ser posta, mas tem que ser, na verdade, pressuposta. Trata-se de uma norma que, diferente de todas as outras, tem sua validade fundamentada não em outra norma, mas sim na simples aceitação de sua validade. Essa simples aceitação, por sua vez, só ocorreria para que assim se pudesse dar validade a todo o restante das normas. Seria uma aceitação necessária para não fazer ruir o edifício de normas que se apoia nesse primeiro fundamento.

Mas isso pareceria nos devolver ao dilema anterior. Afinal, em que dizer que a norma fundamental não é fundamentada por outra norma, mas é, ao contrário, pressuposta como válida seria diferente de dizer que ela é simplesmente uma norma arbitrária, que, como tal, não teria validade, não sendo, portanto, capaz de fundamentar o que quer que seja que pretenda apoiar-se nela? Ou ainda, para colocar em termos mais kelsenianos: Em que dizer que a norma fundamental tem uma validade pressuposta, quer dizer, é simplesmente aceita como válida, é diferente de dizer que é o simples fato da aceitação dessa norma que a torna válida, ou seja, que teria havido uma violação da premissa de que a validade de uma norma não pode estar fundada num fato sem que haja uma norma que atribua a essa fato um sentido normativo particular? Kelsen escapa dessas objeções. Segundo ele, em primeiro lugar, uma norma pressuposta é diferente de uma norma arbitrária se sua pressuposição for uma absoluta necessidade para a validade de outras normas. Se negamos validade, por exemplo, à norma que estabelece que o limite de velocidade em certa rua é 60Km/h, isso não compromete a validade de todas as outras normas e a existência do próprio direito. Portanto, se supuséssemos, para essa norma, que sua validade se funda numa pressuposição, essa pressuposição seria arbitrária, no sentido de não justificada. Se, porém, negamos validade à norma fundamental, comprometemos a validade de todas as outras normas e ameaçamos a própria existência do direito enquanto tal. Portanto, se tornarmos a validade dessa norma pressuposta, não o estaremos fazendo arbitrariamente, e sim justificadamente. É a única norma cuja pressuposição é necessária e, por isso mesmo, justificada, não constituindo arbitrariedade. Em segundo lugar, Kelsen nega que a pressuposição de validade da norma fundamental signifique que uma norma (dever ser: a norma fundamental) estará fundada num fato (ser: o fato de sua aceitação). Não é a aceitação da norma fundamental que a torna válida, mas é, ao contrário, sua validade que torna obrigatória sua aceitação. Para que fosse possível que sua aceitação a tornasse válida, seria necessário supor uma outra norma, anterior e superior, que atribuisse ao fato da aceitação da norma esse sentido normativo, o que a faria deixar de ser, assim, a primeira norma, deixando de ser, por conseguinte, a norma fundamental. A validade da norma fundamental, contudo, não é posta, e sim pressuposta. Ser pressuposta é exatamente não depender de aceitação ou de qualquer outro fato, tendo que ser aceita para que seja possível falar de um ordenamento jurídico vigente. É isso que Kelsen chama de caráter lógico-transcendental da norma fundamental: Ela é uma pressuposição lógica necessária, uma conditio sine qua non, para que possamos falar daí em diante de normas válidas num sistema jurídico.

Podemos, assim, encerrar a primeira parte dessa exposição respondendo objetivamente a essas duas perguntas: O que é a norma fundamental? Resposta: É uma norma pressuposta que serve de fundamento de validade para todas as normas postas de um ordenamento jurídico. Como a norma fundamental surge na argumentação de Kelsen? Surge para escapar do dilema entre regresso infinito e decisão arbitrária na fundamentação de normas por outras normas; surge, portanto, como fundamento primeiro pressuposto que torna possível a consideração de validade de todas as demais normas do sistema.

(2) Agora vamos explicar as funções que a noção de norma fundamental desempenha na teoria de Kelsen. Essas funções são basicamente três, que chamaremos de função epistêmica, de função demarcadora e de função unificadora. Vejamos cada uma.

(a) Função epistêmica: Em primeiro lugar, a norma fundamental torna possível a manutenção daquela objetividade que Kelsen constantemente advoga para a abordagem científica do direito. Kelsen concebe que a ciência do direito deve ter, perante o direito vigente, uma atitude meramente constatativa: Deve preocupar-se com como o direito é, mas não com como ele deve ser. Deve, por assim dizer, aceitá-lo e descrevê-lo como ele é. O estudo do direito deveria, para Kelsen, estar isento de qualquer juízo de valor do intérprete a respeito do conteúdo das normas vigentes. Isso não quer dizer que o intérprete não possa formular um juízo crítico sobre as normas ou propor normas melhores que as que estão vigentes, mas quer dizer, sim, que não deve confundir seu juízo crítico e suas propostas legislativas com o direito que está, de fato, vigente em certo tempo e lugar. Pois bem, tal objetividade não seria possível sem a norma fundamental. Se não, vejamos: Todas as normas inferiores se apoiam, direta ou indiretamente, na constituição. Mas o que torna a constituição válida? Ora, teria que ser ou que as normas da constituição são boas normas, que, porque são boas, deveriam ser aceitas; ou que a constituição foi posta por um ato válido de autoridade, seja da autoridade autocrática de um ditador seja da autoridade democrática de uma assembleia de cidadãos. Num caso ou no outro, não se manteria a necessária objetividade no estudo do direito. No primeiro caso, as normas da constituição seriam válidas apenas na medida em que o intérprete as considera boas normas, de modo que a consideração de sua validade estaria contaminada de juízos morais de valor sobre seu conteúdo. No segundo caso, as normas da constituição seriam válidas apenas na medida em que o intérprete aceitasse a autoridade do ato que a estabeleceu. Mas a aceitação dessa autoridade, não sendo comandada por uma norma, teria que depender da anuência política do intérprete àquele fato, o que também passa pelo recurso a juízos de valor. Se, ao contrário, se supõe que a validade das normas da constituição provém de uma norma fundamental pressuposta que manda obedecer à constituição, essa norma fundamental poderá ser aceita como pura necessidade lógico-transcendental, a qual prescinde de qualquer juízo de valor moral sobre o conteúdo das normas constitucionais e de qualquer juízo de valor político sobre o ato que instituiu essas normas. É a norma fundamental que torna possível sustentar a validade das normas jurídicas de um ponto de vista lógico-transcendental, quer dizer, isento de valores, capaz de manter a tão propugnada objetividade científica do estudo do direito.

(b) Função demarcadora: Em segundo lugar, é a norma fundamental que permite distinguir entre direito e não direito. Uma das teses básicas do positivismo jurídico é a da separação entre normas jurídicas e normas morais. Do ponto de vista formal, essa separação é entre normas cuja obrigatoriedade é objetiva (não sujeita ao juízo de cada um) e independe de seu conteúdo ser bom ou mau (as normas jurídicas) e normas cuja obrigatoriedade é subjetiva (sujeita ao juízo de cada um) e depende de seu conteúdo ser bom ou mau (as normas morais). Contudo, essa tese só faz sentido se houver algum critério objetivo com o qual seja possível identificar quais são as normas jurídicas vigentes. Para Kelsen, esse critério objetivo de demarcação de quais normas são jurídicas e quais não são não exatamente é a norma fundamental, mas depende dela. O critério para saber quais normas jurídicas estão vigentes é consultar que normas foram postas por autoridades autorizadas pela constituição e estão dentro dos limites de conteúdo que a constituição impõe. Para toda norma infraconstitucional, sua validade é o mesmo que sua constitucionalidade formal e material. Mas, para que a constituição possa desempenhar esse papel, é preciso que suas normas tenham também validade e que essa validade não seja moral. O que permite a validade não moral das normas da constituição é a norma fundamental.

(c) Função unificadora: Por fim, a terceira função da norma fundamental é unificar o sistema jurídico. Será possível dizer, então, que para todo par de normas jurídicas N1 e N2, é verdadeiro que tais normas pertencem ao mesmo sistema jurídico se ambas puderem ser reconduzidas, remontando na cadeia de normas, à mesma norma fundamental. Dito de outro modo, normas cuja validade está sustentada, de modo direto ou indireto, próximo ou remoto, pela mesma norma fundamental são normas que fazem parte de um mesmo sistema jurídico. Aqui é necessário evitar uma confusão que é frequente. Kelsen enfatiza que o conteúdo da norma fundamental é sempre o mesmo: Ela ordena obedecer à constituição. Então, se considerarmos os sistemas jurídicos, por exemplo, do Brasil e da Argentina, ambos estão fundados, em última instância, na norma fundamental, a qual tem, tanto no Brasil quanto na Argentina, o mesmo conteúdo. Sendo assim, por que o sistema jurídico brasileiro e argentino não são, então, um único e mesmo sistema jurídico? A resposta a esta questão é que, assim como uma norma que mandasse em cada região falar-se a língua local teria diferentes resultados no Brasil e na Argentina simplesmente porque a língua local de um país e do outro não são a mesma, de igual modo uma norma que mande obedecer à constituição terá diferentes resultados no Brasil e na Argentina simplesmente porque a constituição de um país e do outro não são a mesma. Mas que Brasil e Argentina não tenham a mesma constituição deriva de um fato político, e não jurídico. Sendo assim, isso não comprometeria o caráter lógico-transcendental da norma fundamental, uma vez que aquilo que ela comanda – a obediência à constituição existente naquele tempo e naquele lugar particulares – seria na verdade a adesão a um fato puramente político? Essa objeção confunde duas coisas distintas. Uma coisa é ordenar a obediência a uma norma que só existe em razão de um fato político. Outra coisa é ordenar a obediência a essa norma em razão desse fato político a que ela deve sua existência. Sendo assim, é claro que a autonomia política do Brasil em relação à Argentina e vice-versa é um fato político. Mas não é em razão desse fato que a norma fundamental manda, no Brasil e na Argentina, obedecer a constituição. O motivo do comando da norma fundamental é lógico-transcendental: Sem uma norma que comande obedecer à constituição, esta ficaria sem validade e comprometeria a existência de todo o ordenamento jurídico. A constituição de cada local existe por um motivo político. Mas não é por motivo político que a norma fundamental comanda obedecer à constituição, e sim para tornar possível a consideração puramente científica da validade das normas jurídicas de cada Estado.

(3) A modo de conclusão, vamos primeiro revisar o conteúdo da postagem até agora. Primeiro mostramos por que, para Kelsen, apenas uma norma pode fundamentar a validade de outra norma e por que, para escapar ao dilema entre regresso infinito e decisão arbitrária, Kelsen adota a saída de uma norma pressuposta capaz de fundamentar a validade de todas as normas postas. Em seguida, mostramos que essa norma pressuposta, a norma fundamental, permite a manutenção da objetividade da ciência do direito (função epistêmica), a distinção entre direito e não direito (função demarcadora) e a distinção entre normas jurídicas que pertencem ou não ao mesmo sistema jurídico (função unificadora). Ao longo da explicação, já afastamos algumas objeções à noção de norma fundamental que derivam de más compreensões de sua natureza ou de sua função. Afastamos a objeção de que a norma fundamental é arbitrária, uma vez que sua pressuposição é necessária e, portanto, justificada. Afastamos a objeção de que ela converte um fato (aceitação) em fundamento de uma norma, pois na verdade não é a aceitação da norma fundamental que a torna válida, e sim sua inevitável pressuposição para que se possa falar de qualquer sistema jurídico vigente. Afastamos a objeção de que ela tem conteúdo político, pois, embora a norma que ela comanda obedecer (a constituição) dependa, para sua existência, de um fato político, não é esse fato político o motivo pelo qual a norma fundamental comanda obedecê-la, e sim a necessidade desse comando para a manutenção da validade de todas as normas do ordenamento jurídico.

Precisamos, agora, afastar duas últimas objeções. A primeira é de que, como a norma fundamental manda obedecer à constituição independentemente de esta ter conteúdo bom ou mau e independentemente de ter sido posta por ato ditatorial ou democrático, então a norma fundamental cria uma predisposição de aceitação acrítica da injustiça e do autoritarismo. Primeiro, porque a norma fundamental não é um fato, e sim uma pressuposição, que, enquanto tal, não é capaz de provocar nas pessoas o que quer que seja, muito menos uma predisposição particular. Dizer que há uma norma fundamental pressuposta que manda obedecer à constituição é apenas dizer que, se há uma constituição vigente, então é preciso supor a existência de uma norma que mande obedecer a essa constituição. Segundo porque, se houver da parte das pessoas uma predisposição de aceitação acrítica do que quer que seja, tal predisposição seria, certamente, bem anterior à teoria de Kelsen e bastante independente da aceitação de suas premissas. É bem provável que o positivismo jurídico só seja possível em função de certa força que essa predisposição tem na modernidade, e não o contrário.

A segunda (e, em certo sentido, a mais popular e a menos sólida de todas) é a objeção de que muito admira que uma teoria que tanto insiste em que a ciência se atenha apenas a juízos de fato, em que deixemos de lado fantasias metafísicas e quimeras morais, alegue como fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico uma norma que basicamente não é um fato, mas uma simples pressuposição cerebrina da lavra do filósofo. Em resumo, muito admira que uma teoria positivista do direito recorra a pressuposições. Essa afirmação é produto de ignorância pura e simples sobre o que é e como funciona o positivismo. Não apenas no Direito, mas em qualquer campo que seja, o positivismo não é empirismo: Ele é, inclusive, por assim dizer, a negação do empirismo. Enquanto o empirismo diz que podemos conhecer através da sensação os fatos da realidade, o positivismo diz que só podemos conhecer os fatos que o método torna possível conhecer, sendo o método, e não a realidade, o fundamento de validade do conhecimento. No caso do positivismo jurídico, isso quer dizer que não é a simples observação das normas que nos vai dar uma concepção científica do direito, mas, ao contrário, é necessário um método através do qual tais normas serão apreciadas e estudadas de modo tal a permitir que se faça delas um juízo científico, isto é, ao ver do positivismo: um juízo objetivo, isento de valores, suscetível de demonstração. Ocorre que o método não é fato, o método é um conjunto de regras e pressupostos que tornam possível o conhecimento objetivo de certa porção da realidade. Sendo assim, uma teoria positivista precisa assumir regras e pressupostos, sob pena de não dispor de um método, esperar tudo dos fatos e deixar de ser, em sentido estrito, uma teoria positivista. Kelsen não acredita que os fatos sozinhos possam nos fornecer uma teoria científica. Os fatos só nos dizem algo quando interrogados e interpretados à luz de um método constrúido de modo tal que nos proporcione respostas objetivas. Para isso, são necessárias regras e pressuposições, não sendo a norma fundamental nem a pressuposição única nem a mais problemática das que Kelsen nos informa que é necessário assumir numa teoria positivista do direito. Mas o pior de tudo é que quem formula essa objeção ou acredita que seria possível uma teoria puramente factual do direito que não recorresse a qualquer pressuposto que fosse, ou acredita que o positivismo jurídico parte dessa hipótese, que é, pelo contrário, exatamente aquela que ele nega mais veementemente. Seja num caso seja no outro, é o tipo de coisa que jamais deveria ser dito a sério no plano acadêmico, mas é, infelizmente, repetido a torto e a direito graduação e pós-graduação afora. Espero ter contribuído para que esse tipo de erro não ocorra mais.

Fonte: Blog Prof. do André Coelho

 

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