Um balanço parcial das questões tributárias aduaneiras no STF em 2020

O isolamento exigido pela pandemia promoveu a sensação de que o tempo parou. Esse, porém, não foi o caso dos julgamentos de temas tributários pelo Supremo Tribunal Federal, uma vez que a corte imprimiu um ritmo frenético à sua pauta de julgamentos, com prejuízo notório para a qualidade de seus julgados. Impulsionado pela suspensão dos julgamentos presenciais (de março a agosto de 2020), foram julgados, até 15 de novembro, 111 processos com decisão de mérito. O número surpreende. Em condições normais, como também informa o próprio STF, são julgados, em média, 30 processos, por ano. Pior para a pauta tributária. Muitas vezes, sem debates e sem sintonia com os precedentes já firmados, entendimentos acerca de questões já pacificadas em outros tribunais ou no próprio STF são alterados.

Até o momento, em matéria tributária aduaneira, pelo menos 11 temas foram decididos em 2020, com apenas 27,27% de êxito para os contribuintes. Estão na pauta do STF de dezembro, ainda, outros quatro processos (três deles relacionados ao ICMS na importação de gás natural da Bolívia e um relacionado à substituição tributária de PIS/Cofins exigida das importadoras de veículos). Em vias de finalização, o julgamento das ADIs 1945 e 5659 já conta com maioria para o afastamento do licenciamento/cessão de direito de uso de software do campo de incidência do ICMS.

A maior parte dos litígios diz respeito ao tema importação. Em abril, no início do isolamento, o STF decidiu o ARE 665.134, afetado ao Tema 520 da Repercussão Geral. Por unanimidade, foi negado provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do relator, ministro Edson Fachin. Após o decurso de oito anos, foi firmada a tese de que o sujeito ativo do ICMS incidente sobre mercadoria importada é o Estado-membro no qual está domiciliado ou estabelecido o destinatário legal da operação que tenha ocorrido com transferência de domínio da mercadoria.

Entre os processos desse tema, talvez o mais notório tenha sido o julgamento virtual do Tema 906, em agosto de 2020. O RE 946.648 discutia a incidência do IPI na revenda de produtos importados, sendo que o STJ já possuía jurisprudência vinculante, firmada em 2018, entendendo pela possibilidade da cobrança (EREsp 1.403.532). O IPI-Importação, de acordo com o artigo 46 do Código Tributário Nacional, incide no momento da entrada da mercadoria no país, ou seja, no desembaraço aduaneiro (inciso I) e no momento da sua comercialização no mercado interno (inciso II). Tomada como seu houvessem dispositivos autônomos, a jurisprudência firmou que a norma definidora do fato gerador provoca dupla incidência do tributo na mesma operação: o contribuinte que importa para revenda, ainda que não promova operação de industrialização após a entrada da mercadoria no país, deve recolher o IPI novamente.

A discussão circunscreveu-se à verificação de não ter havido violação à isonomia entre importador e industrial. No julgamento do RExt., o relator, ministro Marco Aurélio, entendeu que não haveria beneficiamento industrial a justificar a cobrança (argumento que parece acertado), dada a impossibilidade de aplicação cumulativa do artigo 46, seja pela natureza sucessiva de seus incisos, seja pela impossibilidade de bitributação, seja pela vedação de tratamento discriminatório ao produto importado (artigo I e III do GATT). O ministro Dias Toffoli abriu a divergência e foi acompanhado por cinco ministros. Diante disso, foi fixada a tese de repercussão geral: “(é) constitucional a incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI no desembaraço aduaneiro de bem industrializado e na saída do estabelecimento importador para comercialização no mercado interno”.

Em setembro, foi julgado o Tema 1.094 (leading case RExt. 1.221.330). A tese aprovada foi no sentido de que o ICMS-Importação, depois da EC 33/2001 e da LC 114/2002, é devido mesmo nas hipóteses nas quais o destinatário, pessoa física ou jurídica, não realizar operações habituais de comércio ou prestação de serviços. De acordo com o STF, as normas estaduais que previram a incidência, antes de a lei complementar regulamentar a questão, apenas produzem efeitos a partir de 2002 (quando a LC 114/2002 inseriu o parágrafo único ao artigo 4º da LC 87/1996).

Também de setembro é a decisão do RE 1.178.310 (Tema 1.047), relativo ao adicional da Cofins-importação. O adicional de 1% foi instituído por lei ordinária e seu creditamento para contribuintes sujeitos ao regime não cumulativo de recolhimento de PIS/Cofins é vedado pelo artigo 15, § 1º-A, da Lei 10.865/2004. O pedido era pela declaração de inconstitucionalidade do adicional e para que se garantisse, ao menos, o direito ao crédito. Como sabido, a vedação ao creditamento fere a não cumulatividade, uma vez que transfere o resíduo tributário para as demais etapas da cadeia plurifásica. Entretanto, o STF, por unanimidade, admitiu o adicional de 1% e, por maioria, reputou constitucional a vedação ao creditamento.

Também envolvendo limitação à não cumulatividade das contribuições sociais, o STF confirmou a constitucionalidade da vedação ao crédito de PIS em operações com pessoas jurídicas domiciliadas no exterior, nos termos do artigo 3º, § 3º, I e II, da Lei 10.637/2003, no julgamento do RE 698.531 (Tema 707).

Em novembro, foi julgado o RE 633.345 (Tema 744), a respeito do tratamento tributário diferenciado para as importadoras de autopeças que não fossem fabricantes de máquinas e veículos. Os incisos I e II do §9º do artigo 8º da Lei 10.865/2004 preveem alíquotas de 2,3% para a PIS-Importação e de 10,8% para a Cofins-Importação para os mencionados contribuintes, enquanto a contribuição para as fabricantes de máquinas e veículos que realizam a mesma hipótese de incidência têm alíquotas de 1,65% e 7,6%, respectivamente. O argumento condutor do entendimento unânime dos ministros foi o de que as contribuições sociais incidentes sobre a importação seriam tributos regulatórios, atuando na promoção ou desestímulo de atividades econômicas. Entretanto, como as contribuições sociais têm o produto de sua arrecadação vinculado a atividades relacionadas com a seguridade social, elas são tributos com função redistributiva, não regulatória. É dizer, a política fiscal relacionada às contribuições sociais deve pautar-se pelo financiamento da seguridade social, não pela necessidade de regulação de qualquer setor econômico.

É também importante registrar a decisão pela ausência de repercussão geral do Tema 391 (RE 635.443) sobre a base de cálculo da PIS/Cofins na importação feita no âmbito do sistema Fundap, “quando fundada na análise de fatos e provas que originaram o negócio jurídico subjacente à importação e no enquadramento como operação de importação por conta e ordem de terceiro de que trata a MP nº 2.158-35/2001″.

No que diz respeito às exportações, a amplitude da imunidade foi tema de análise pelo STF em três oportunidades.

A primeira delas, em maio, no julgamento do RE 598.468 (Tema 207), em que se firmou a tese de “(a)s imunidades previstas nos artigos 149, §2º, I, e 153, § 3º, III, da CRFB/1988 são aplicáveis às empresas optantes pelo Simples Nacional” (excluída a imunidade da CSLL e da PIS). De acordo com a decisão de julgamento, para o ministro Edson Fachin, cujo posicionamento saiu vitorioso (em oposição ao voto dos ministros Marco Aurélio, relator, e Ricardo Lewandowski), a imunidade é objetiva e alcança tão somente “as receitas decorrentes de exportação e a receita oriunda de operações que destinem ao exterior produtos industrializados”.

A segunda (RE 759.244 — Tema 674), em junho, garantiu, por unanimidade, que a imunidade prevista no artigo 149, §2º, I, da CRFB/1988 (imunidade das receitas de exportação para as contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico) alcança as receitas decorrentes de operações indiretas de exportação, ou seja, aquelas realizadas com a contratação de trading companies. O caso específico analisava os §§1º e 2º do artigo 245 da Instrução Normativa nº 03/2005 que restringiam a imunidade à comercialização de açúcar e álcool diretamente com adquirente domiciliado no exterior.

A terceira, em agosto, negou a extensão da imunidade do ICMS a operações ou prestações anteriores à de exportação (RE 754.917, Tema 475). A recorrente alegava que a embalagem compunha o produto exportado. O relator, ministro Dias Toffoli, porém, sustentou que só faz sentido falar em manutenção de créditos pelos exportadores se houver pagamento de imposto nas etapas anteriores da cadeia de exportação. Esse entendimento pode ser questionado, sobretudo diante do entendimento já firmado pelo STJ (RESP nº 1.221.170) no sentido de que os insumos indispensáveis à atividade comercial devem receber tratamento favorecido, sobretudo se existe o propósito exportador (viés extrafiscal da norma). A maioria dos ministros acompanhou o relator e restaram vencidos os ministros Marco Aurélio e Edson Fachin.

Ainda, com relação aos casos de redução de alíquota de benefício fiscal cujo aproveitamento dos créditos tenha relação direta com as contribuições de que trata o artigo 195, §6º, da CRFB/1988 (anterioridade nonagesimal das contribuições), o STF não vislumbrou qualquer inconstitucionalidade. No caso, avaliava-se, especificamente, o Reintegra. Também houve o julgamento da ADI 4254, em agosto de 2020, que questionava a incidência de PIS/Cofins (regime monofásico) sobre as receitas de concessionárias-revendedoras situadas na Zona Franca de Manaus (anteriormente tributas à alíquota zero). A relatora, ministra Carmen Lúcia, considerou que na venda por empresa fabricante ou importadora de veículo para a ZFM, haverá a equiparação dessa operação a uma exportação, o que atrai a imunidade das receitas. Por isso, a alíquota que recompõe todo o ciclo econômico da cadeia produtiva, até o consumidor final, deveria ser menor que a estabelecida pela Lei 10.485/2002.

O último bloco de decisões tributárias aduaneiras do STF, em 2020, refere-se a normas de fiscalização e obrigações acessórias.

Em setembro, o STF admitiu a retenção de bens importados até o pagamento da diferença apurada do tributo, no julgamento do RE 1.090.591 (Tema 1042). A Súmula 323 do STF prevê que é “inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”. Ainda assim, o relator, ministro Marco Aurélio, considerou que o pagamento do tributo e da multa são essenciais para a finalização do procedimento de desembaraço aduaneiro. Não haveria, então, qualquer coação, já que, nos termos do §1º do artigo 571 do Decreto 6.759/2009 (Regulamento Aduaneiro), o recolhimento de diferenças fiscais faria parte do procedimento ordinário do desembaraço. Para reforçar seu entendimento, mencionou que a doutrina distingue apreensão de retenção: enquanto a primeira ocorreria nos casos de pena de perdimento, a segunda aconteceria naturalmente enquanto não finalizado o desembaraço aduaneiro. O relator citou, ainda, jurisprudência do STF sobre a constitucionalidade de se exigir o pagamento do tributo no procedimento de desembaraço. A questão, todavia, dizia respeito à exigência de diferenças apuradas pela RFB, que podem ser decorrentes de questões controvertidas quanto ao direito aplicável. É possível arguir que, se o contribuinte apura e recolhe um valor, e a RFB não concorda, o procedimento para se cobrar o tributo devido não pode ser a retenção da mercadoria. O mecanismo traduziria cobrança mediante sanção política, sobretudo quando não há ausência de pagamento de tributo na entrada do bem no país. De toda forma, a decisão dos ministros foi unânime e reverteu uma jurisprudência consolidada por anos no STF.

Sobre a taxa Siscomex, foi reforçada a jurisprudência do STF sobre a inconstitucionalidade do seu aumento excessivo por ato infralegal, o que não leva à invalidade do tributo nem impede que o Executivo atualize os valores previstos em lei conforme os índices oficiais de correção monetária. O RE 1.258.934 (Tema 1.085) discutia aumento superior a 500% perpetrado pela Portaria 257/2011. O voto do relator, seguido pela unanimidade dos ministros, reforçou a possibilidade de majoração da taxa, desde que limitada aos índices de correção oficiais, como o INPC. Agora os contribuintes seguem enfrentando problemas para parametrizar os valores das taxas, em diferentes pontos do país, diante das decisões favoráveis considerando inválidas as majorações.

A extensão prolongada da pandemia da Covid-19, sem qualquer previsão de retorno presencial dos julgamentos do STF, além de afetar diretamente a qualidade dos julgados, dificulta a realização de previsões acerca dos entendimentos jurisprudenciais. Da mesma forma, a insegurança proporcionada por pedidos de destaque, que reiniciam a votação, não pode proporcionar reviravoltas em temas aparentemente decididos.

Não pode o Judiciário, por vezes abusando de análises consequencialistas, favorecer o entendimento do Fisco, tão somente para garantir a cobertura dos déficits orçamentários. O consequencialismo de folego curto pode, no longo prazo, fazer o Sistema Tributário Nacional desintegrar. Não se faz justiça com máquinas de calcular, mas com a Constituição e em consonância com o melhor Direito. O futuro sempre cobra a fatura.

Oxalá 2021 não seja um ano tão difícil para o Direito Tributário Aduaneiro. A certeza é que não se pode aferir a importância e a qualidade de um tribunal pelo número de processos julgados.

Marina Soares Marinho é professora de Direito Tributário da graduação da UFMG e da pós-graduação da PUC/Minas, mestre e doutoranda em Direito pela UFMG e sócia do Coimbra & Chaves Advogados.

Filipe Piazzi Mariano da Silva é coordenador da Faculdade de Direito do UNASP, doutorando em Direito pela Universidade Mackenzie/SP, mestre e especialista em Direito Tributário pela Universidade Mackenzie/SP e sócio do Coimbra & Chaves Advogados.

Revista Consultor Jurídico, 23 de novembro de 2020, 10h35

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