Não incide IPI na reindustrialização de reciclagem

O termo reindustrialização, na acepção empregada neste artigo, é o de reindustrialização de reciclagem, onde determinado produto final de um processo de manufaturação, produto industrializado, após concluído o curso de seu uso projetado, ou antes por qualquer razão, retorna ao plano de produção industrial para reciclagem e re-produção para obtenção do mesmo produto da etapa inicial de industrialização. Os exemplos mais adequados, no atual estado da técnica, são as embalagens de alumínio, plásticas, vidro e papelão e produtos elaborados com aço comum e inoxidável.

A Constituição Federal conferiu à União a competência para tributar, segundo seu texto expresso, produtos industrializados, (art. 153, IV) especificamente.

Uma característica do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), essa formulação no texto constitucional, na qual não é indicada a expressão “operações com produtos industrializados”, mas o objeto, onde se poderia ver autorizado o legislador ordinário a tributar qualquer operação/situação jurídica com produtos industrializados — sua propriedade, o aluguel, o comodato, a venda e a doação — resultando, entretanto do contexto histórico, que apenas as operações onerosas com produtos industrializados formam o núcleo da  regra de incidência na legislação ordinária.

Conforme Paulo de Barros Carvalho, recitando doutrina de José Souto Maior Borges, um conceito amplo de tributo é utilizado para denotar o inteiro processo de instauração normativa, começando pela limitação competencial à formalização do direito subjetivo da entidade tributante, com a edição da norma individual e concreta, resultando que sob essa acepção, fica refutado o enunciado comum no direito tributário de que “a Constituição não cria tributos”.  Souto Borges afirma que na Constituição estão as outorgas de competência sem as quais as figuras impositivas não poderiam ser criadas na legislação ordinária[1].

Disso deve-se depreender que os limites para o critério material das regras matrizes de incidência estão já dispostos no texto constitucional, vinculando o legislador comum à figuras engendradas pelo legislador constitucional. Paulo de Barros Carvalho ainda adverte serem numerosos os postulados da tributação na Carta, mas poucas e especialíssimas as regras-matrizes de incidência dos tributos, em geral apenas uma, específica da competência tributária[2].

As regras matrizes de incidência, por sua vez, devem, conforme a diretriz constitucional da estrita legalidade, exibir todos os enunciados necessários para percussão tributária em lei stricto sensu,  e esta, por disciplina derivada do Estado democrático de direito, deve ser integralmente composta por definições com DNA constitucional, na expressão usada por Lenio Luiz Streck.

Mas no plano da literalidade textual das prescrições normativas, adverte ainda Barros Carvalho, embora seguro da estabilidade das fontes das normas consignadas em textos legais, modificações na significação de certos termos do texto são incontroláveis na instância pragmática.  Assim coloca o eminente jurista a constatação: “Ninguém pode prever, com visos de racionalidade, o rumo que os utentes da linguagem do direito, num dado momento histórico, vão imprimir às significações de certas palavras”[3]. E arremata, para exortar o aprofundamento da pesquisa da dimensão pragmática, que essa necessidade advém da aceleração da disponibilidade de informações que alteram a significação dos termos jurídicos. Acresça-se a isso a modificação das próprias circunstâncias advinda do conhecimento científico e das mudanças tecnológicas, onde esses mesmos pontos de partidas normativos devem ser agora adequadamente interpretados/aplicados.

A regra-matriz de incidência do IPI definida pela doutrina clássica do tema consigna as operações jurídicas realizadas com produtos industrializados[4] como o antecedente normativo para surgimento do vinculo obrigacional.

Especificando o conceito de produtos industrializados, a doutrina afirma que o texto constitucional usa a referida expressão em sua acepção técnica e que o artigo 46, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, reflete adequadamente esse conceito técnico, no qual considera-se produto industrializado aquele que submetido a qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade, ou o aperfeiçoe para o consumo[5]. Eduardo Domingos Bottallo inclusive recorre à lição de Geraldo Ataliba para estabelecer que a Constituição de 1988, em seu artigo 153, IV, adotou o referido conceito com base nesta anterior definição do CTN, reproduzindo o jurista paulistano “…presume-se que o legislador constitucional tomou como referencial este conceito, ao elaborar o texto de 1988. Nada indica deliberação de alterar tal conceituação”.

A situação de reindustrialização de um produto foge a essa conceituação histórica de produto industrializado. Essa última define industrialização como o processo industrial de transformação de matérias-primas e produtos intermediários em produto novo, diverso em natureza dos elementos que o formam.

Essa especificação do conceito foi positivada bem antes da Constituição de 1988, através dos diversos decretos que regulamentaram o imposto. A partir da edição Decreto 70.162/72, foram detalhados e nominados os processos industriais que diziam respeito ao conceito de industrialização: transformação (operação exercida sobre matéria-prima ou produto intermediário, importe na obtenção de espécie nova); beneficiamento (operação que importe em modificar, aperfeiçoar ou, de qualquer forma, alterar o funcionamento, a utilização, o acabamento ou a aparência do produto; montagem (operação que consista na reunião de produtos, peças ou partes e de que resulte um novo produto ou unidade autônoma, ainda que sob a mesma classificação fiscal); acondicionamento ou recondicionamento (operação que importe em alterar a apresentação do produto, pela colocação de embalagem, ainda que em substituição da original, salvo quando a embalagem colocada se destine apenas ao transporte da mercadoria); renovação ou recondicionamento (operação que, exercida sobre produto usado ou partes remanescentes de produto deteriorado ou inutilizado, o renove ou restaure para utilização (renovação ou recondicionamento) observadas as disposições dos artigos 209 a 212, conforme o citado decreto. Esta última especificação, que para alguns autores é a hipótese a qual se subsume a reindustrialização, tem maior detalhamento nos artigos do decreto supra citados e indicam evidente conceito de restauração e reparo.

A reindustrialização não se enquadra nessas definições clássicas de industrialização. No processo de logística reversa em especial, particularmente aquele definido pela Lei 12.305/10, que institui a política nacional de resíduos sólidos, para reaproveitamento em ciclo do agente econômico produtor do bem industrializado, o processo de nova manufatura não parte de matérias-primas básicas e produtos intermediários, como acima conceituado para transformação. Principia com a recuperação do produto industrializado original e o reindustrializa-o com mesma natureza e finalidade. Não resulta em criação de item novo no estoque industrial global, mas o processamento para reposição do mesmo item.

Também não se enquadra no último processo de industrialização de renovação e recondicionamento. Sobre este, diga-se, legislação infralegal (decretos) ampliou indevidamente o conceito estabelecido pelo artigo 46, parágrafo único, do Código Tributário Nacional.

A renovação de produto usado não tem características de modificação da natureza ou finalidade do produto e a expressão “aperfeiçoamento para o consumo” diz tanto a respeito do conceito de produto industrializado quanto o procedimento de lavagem e polimento de automóveis destinados a locação ou a organização por cores de cápsulas de café preparado [6]. Essa volátil e vaga expressão não serve por exemplo para definir como industrialização atividade de corte de chapas de aço ou vidro, como fixado o entendimento em Parecer Normativo da Receita Federal.[7]

A reindustrialização de reciclo não é realizada com o recondicionamento ou renovação do produto industrializado adquirido para reprocessamento. Nela há a completa desintegração da estrutura do item e sua reindustrialização para obter o produto originalmente produzido, mas ainda o mesmo item, sem alterar natureza ou finalidade.

Abandonada essa interpretação histórica sobre produto industrializado e a relação com a incidência do IPI para a reindustrialização, necessário estabelecer uma compatível com o quadro constitucional contemporâneo.

A construção de um conceito de desenvolvimento sustentável, único atualmente admissível, demanda uma reformulação do pensamento sobre a atividade empresarial, seus processos e do direito de superposição que a afeta, como o direito tributário e o direito econômico.

A atividade econômica, em uma estrutura de mercado como a do Brasil, encontra seus princípios jurídicos estabelecidos na Constituição Federal, a partir dos quais os agentes econômicos encontram-se limitados, mas onde também tem assegurados suas liberdades, prerrogativas e incentivos socialmente aceitos e juridicamente estabelecidos.

Entre estes princípios, encontra-se o disposto no art. 170, IV, introduzido pela Emenda Constitucional 42 de 2003,que consigna:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;

A determinação constitucional de tratamento diferenciado dirige-se primariamente ao legislador complementar, mas a irradiação de seu objetivo programático perpassa por impor modificação nos conceitos de diversos aspectos do direito, inclusive o tributário.[8]

Assim, o produto industrializado e o reindustrializado em reciclagem, na atividade de logística reversa, devem ser juridicamente abordados de forma distinta, de maneira a refletir os novos conceitos e princípios albergados no texto constitucional contemporâneo para uma apropriada subsunção na regra-matriz de incidência do IPI, ou, quando assim compreendido, pelo reconhecimento de sua não incidência, onde comprovadas as situações e condições para afastar o conceito de industrialização e produto industrializado primariamente, objeto do núcleo da hipótese de incidência daquele imposto.

Alberto da Câmara Lima Falcão. Auditor-Fiscal do Tesouro de Pernambuco. Especialista em Direito Empresarial pela UFPE.


[1] Paulo de Barros Carvalho, Direito Tributário – Fundamentos Jurídicos da incidência, 8ªed., São Paulo, Saraiva, 2010, p. 130.

[2] Op. cit., p. 131.

[3] Op. cit., p. 111.

[4] Eduardo Domingos Bottalo, IPI: princípios e estrutura., São Paulo, Dialética, 2009, p.32.

[5] Op. cit., p. 33.

[6] Sobre este tópico, a valiosa advertência de Roque Antonio Carrazza: “Se porventura, uma pessoa política pretender, por meio de norma legal ou infralegal, dilatar as raias de sua competência tributária, de duas, uma: ou esta norma invadirá seara imune à tributação ou vulnerará competência tributária alheia. Em ambos os casos será inconstitucional.” Direito Constitucional Tributário, 26ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010.

[7] Parecer Normativo nº 19, de 6 de setembro de 2013, da Receita Federal do Brasil. In(http://www.receita.fazenda.gov.br/Legislacao/PareceresNormativos/2013/parecer192013.htm. Acesso em 28.04.2014)

[8] Roque Antonio Carrazza. Direito Constitucional Tributário, 26ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010. p. 727.

 

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 9 de maio de 2014

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