A declaração de inidoneidade fiscal e a súmula 509 do STJ

A súmula dispõe que “é lícito ao comerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e venda”.

A declaração de inidoneidade fiscal é uma ferramenta utilizada pelas Fazendas Estaduais para evitar que o contribuinte do ICMS em situação irregular emita notas fiscais, consideradas inidôneas por algum motivo.

Como consequência, aquele que negociar com esse contribuinte faltoso, cuja situação fiscal estará disponível no SINTEGRA, responderá de alguma forma por ter agido de má-fé ou por não ter sido diligente.

Até aqui, trata-se de um procedimento de praxe, simples e justo.

Entretanto, há uma série de particularidades no seu procedimento. A começar pela origem da declaração de inidoneidade fiscal no âmbito do ICMS.

O primeiro registro – tomando o Estado de São Paulo como exemplo – é de 1973, por ocasião da Portaria CAT 10, evoluindo até chegar na Portaria 95/06 e alterações.

Essa primeira portaria, de 1973, oportunizava a correção de irregularidade de contribuintes de boa-fé no que tange à escrituração dos créditos para evitar o creditamento indevido de ICMS lastreado em documentos fiscais inidôneos. A segunda, que a revogou, de 67/82, já foi além, passando a prever a lavratura de auto de infração quando confirmado o creditamento indevido.

Atualmente, a declaração de inidoneidade é tão grave que o contribuinte adquirente ou tomador dos serviços tributáveis pelo ICMS poderá, dentre outros problemas, ver-se impedido no exercício de suas atividades empresariais e ainda ter de responder criminalmente pelos atos do emitente faltoso.

Em relação ao procedimento vigente, são três as críticas: 1) ausência de um processo específico de declaração de inidoneidade fiscal (na prática, a autoridade fiscal utiliza como fundamentação legal dispositivos que dizem respeito ao descumprimento de comandos legais genéricos e aqueles previstos nas Portarias do Coordenador da Administração Tributária, que, apesar de se voltarem para a inatividade do contribuinte faltoso, pela aludida ausência, carecem do indispensável fundamento de validade); 2) retroatividade dos efeitos da declaração de inidoneidade fiscal baseada em presunções (em muitos casos, presumidamente o Fisco indica uma data como marco da infração e faz com que todos os efeitos pertinentes ao ilícito provado em determinada data sejam aplicados retroativamente até a data do ilícito e bem sabemos que a presunção somente poderá ser empregada se houver o estabelecimento de um nexo causal entre o indício e a existência da infração, conforme as regras impostas pelo próprio sistema); e 3) A dispensa da publicidade do ato que declara a inidoneidade (para o Fisco, não seria necessária nem a publicação da declaração de inidoneidade fiscal no Diário Oficial, por serem contados do ilícito os efeitos da declaração e não de sua publicidade – há casos em que as notas fiscais emitidas desde o início das atividades do contribuinte são consideradas inidôneas, como se o estabelecimento nunca tivesse existido).

Quanto à boa-fé, se dependesse somente da redação da legislação do ICMS, bastaria o descumprimento da obrigação principal ou do dever instrumental que o infrator responderia, sem qualquer chance de defesa, até porque a nota fiscal tida como inábil faz prova somente em favor do Fisco, de acordo com o disposto no parágrafo único do artigo 184 do RICMS/SP.

E fazer prova somente em favor do fisco, mais que ferir os princípios do contraditório e da ampla defesa, viola os princípios da moralidade administrativa e da confiança, todos eles representados por um único princípio, justamente o da boa-fé – um dos pilares para o fortalecimento da segurança jurídica.

Face a todo esse debate sobre a boa-fé, recentemente foi publicada a Súmula 509 do STJ: “É lícito ao comerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e venda.

Essa súmula tomou como base alguns precedentes, dentre eles o recurso especial representativo de controvérsia RESp 1.148.444/MG, assim ementado:

PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO 543-C, DO CPC. TRIBUTÁRIO. CRÉDITOS DE ICMS. APROVEITAMENTO (PRINCÍPIO DA NÃO-CUMULATIVIDADE). NOTAS FISCAIS POSTERIORMENTE DECLARADAS INIDÔNEAS. ADQUIRENTE DE BOA-FÉ.

1. O comerciante de boa-fé que adquire mercadoria, cuja nota fiscal (emitida pela empresa vendedora) posteriormente seja declarada inidônea, pode engendrar o aproveitamento do crédito do ICMS pelo princípio da não-cumulatividade, uma vez demonstrada a veracidade da compra e venda efetuada, porquanto o ato declaratório da inidoneidade somente produz efeitos a partir de sua publicação (Precedentes das Turmas de Direito Público: EDcl nos EDcl no REsp 623.335/PR, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em 11.03.2008, DJe 10.04.2008; REsp 737.135/MG, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 14.08.2007, DJ 23.08.2007; REsp 623.335/PR, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em 07.08.2007, DJ 10.09.2007; REsp 246.134/MG, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Turma, julgado em 06.12.2005, DJ 13.03.2006; REsp 556.850/MG, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 19.04.2005, DJ 23.05.2005; REsp 176.270/MG, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 27.03.2001, DJ 04.06.2001; REsp 112.313/SP, Rel. Ministro Francisco Peçanha Martins, Segunda Turma, julgado em 16.11.1999, DJ 17.12.1999; REsp 196.581/MG, Rel. Ministro Garcia Vieira, Primeira Turma, julgado em 04.03.1999, DJ 03.05.1999; e REsp 89.706/SP, Rel. Ministro Ari Pargendler, Segunda Turma, julgado em 24.03.1998, DJ 06.04.1998).

2. A responsabilidade do adquirente de boa-fé reside na exigência, no momento da celebração do negócio jurídico, da documentação pertinente à assunção da regularidade do alienante, cuja verificação de idoneidade incumbe ao Fisco, razão pela qual não incide, à espécie, o artigo 136, do CTN, segundo o qual “salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato” (norma aplicável, in casu, ao alienante).

3. In casu, o Tribunal de origem consignou que: “[…] os demais atos de declaração de inidoneidade foram publicados após a realização das operações (f. 272/282), sendo que as notas fiscais declaradas inidôneas têm aparência de regularidade, havendo o destaque do ICMS devido, tendo sido escrituradas no livro de registro de entradas (f. 35/162). No que toca à prova do pagamento, há, nos autos, comprovantes de pagamento às empresas cujas notas fiscais foram declaradas inidôneas (f. 163, 182, 183, 191, 204), sendo a matéria incontroversa, como admite o fisco e entende o Conselho de Contribuintes”.

4. A boa-fé do adquirente em relação às notas fiscais declaradas inidôneas após a celebração do negócio jurídico (o qual fora efetivamente realizado), uma vez caracterizada, legitima o aproveitamento dos créditos de ICMS.

5. O óbice da Súmula 7/STJ não incide à espécie, uma vez que a insurgência especial fazendária reside na tese de que o reconhecimento, na seara administrativa, da inidoneidade das notas fiscais opera efeitos ex tunc, o que afastaria a boa-fé do terceiro adquirente, máxime tendo em vista o teor do artigo 136, do CTN.

6. Recurso especial desprovido. Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008 (REsp 1148444/MG, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 14-4-2010, DJe de 27-4-2010).

Orientação louvável por interpretar aspectos de suma importância, que podemos reduzir a quatro:

1) Interpreta o ato que declara a inidoneidade como sendo de natureza declaratória e não constitutiva, tendo como consequência a máxima de que a produção de efeitos da declaração se dá após a publicação do ato no Diário Oficial; bem diferente, portanto, da tese fazendária constitutiva, de que o ato que declara a inidoneidade apenas declara um ilícito preexistente, devendo, por esse motivo, retroagirem seus efeitos até aquele momento, da emissão do documento viciado.

2) Garante o aproveitamento do crédito ao adquirente de boa-fé, bastando a comprovação da efetiva operação sujeita ao ICMS.

3) Esclarece os requisitos para que uma operação sujeita ao ICMS tenha efetividade (destaque do ICMS devido, escrituração da operação no livro de registro de entradas e comprovante do pagamento).

4) Inaplicabilidade do artigo 136 do CTN face ao adquirente, pelo fato de ser pessoal e se aplicar ao agente infrator, ou seja, ao contribuinte que emitiu irregularmente o documento fiscal e não ao adquirente de boa-fé. Em outras palavras, cabe sim ao adquirente, no momento da celebração do negócio, cercar-se dos cuidados necessários, munindo-se de documento que afira a regularidade do alienante, mas não a idoneidade, cuja falta leva à responsabilização por infrações ao alienante, na medida em que é o Fisco e não o particular-adquirente que tem poder de polícia e acesso privilegiado a informações prestadas pelo alienante à Administração.

Nesse ponto, porém, a própria natureza da responsabilidade por infrações do artigo 136 do CTN, se objetiva (não cabendo conjecturas sobre as condições pessoais do sujeito passivo, se houve ou não intenção de lesar o Fisco) ou subjetiva (culpa presumida, própria da responsabilidade subjetiva, que, a despeito de não demandar prova da intenção do agente para configuração do dolo, não significa que não se pode provar a culpa para excluir a responsabilidade) precisa ser melhor debatida. Até porque, uma coisa é estabelecer o artigo 136 que a responsabilidade penal tributária independe de dolo, de intenção, outra coisa é dizer que ela independe de culpabilidade.

Defendemos isso com amparo da tese de que até mesmo a Administração Pública admite a responsabilização subjetiva nas suas relações, afastando a responsabilidade objetiva absoluta do Estado. Não fosse assim, o Estado responderia sempre e o agente público faltoso ficaria sempre impune.

E há tantos outros aspectos a serem explorados e que não foram objeto de discussão no STJ, como aqueles que dizem respeito às condições da idoneidade fiscal.

Pela leitura do artigo 36, § 1º, item 3, da Lei Paulista nº 6.374/89, para que a idoneidade fiscal seja atestada, ou seja, para que o documento fiscal (nota fiscal) seja considerado hábil, apto, é necessário que: (i) “atenda a todas as exigências da legislação pertinente”; (ii) “seja emitido por contribuinte em situação regular perante o fisco”; e (iii) “esteja acompanhado, quando exigido, de comprovante do recolhimento do imposto”.

Não obstante, o fato de ter que atender a todas as exigências da legislação pertinente e de a nota fiscal ter que ser emitida por contribuinte regular perante o Fisco implicam uma série de problemas, a começar pelo fato de o procedimento de declaração da inidoneidade geralmente se dar por portaria.

De fato, dentro do quesito “situação regular perante o Fisco” previsto na Portaria CAT 95/2006 de São Paulo, há quatro situações a serem analisadas a fim de se aferir a regularidade fiscal do contribuinte. São elas: 1) inscrição no cadastro de contribuintes do ICMS (situação cadastra ativa e outros enquadramentos: inscrição nula, suspensa, cassada, inapta e baixada); 2) estar o emitente em atividade no local indicado no cadastro; 3) possibilidade de se comprovar a autenticidade dos demais dados cadastrais apontados pelo emitente ao Fisco; 4) não cometimento de ilícitos tributários (artigos 20 e 21 da lei paulista 6.374/89).

Mas é tanta a confusão gerada a partir deste quesito e de suas situações que se abre um leque de repercussões negativas para o contribuinte destinatário que precisam ser seriamente sopesadas.

Para se ter uma ideia de sua extensão, para o contribuinte destinatário de boa-fé as repercussões acabam sendo até mais expressivas que para o próprio emitente da nota fiscal declarada inidônea, dentre elas o impedimento de exercer seu direito de compensação pela não cumulatividade do ICMS, a glosa dos créditos utilizados ou a autuação para recolher o imposto eventualmente não pago pelo emitente, seja na condição de próprio contribuinte, seja na condição de responsável, por solidariedade, e multa, incidente sobre o valor da operação ou prestação e não sobre o valor do imposto, segundo entendimento de parte da jurisprudência.

Em seu ponto mais crítico, além de os sócios serem chamados para responder criminalmente pelos atos do emitente faltoso, o adquirente de boa-fé poderá ter suas atividades encerradas, quando então sua situação cadastral no Cadastro de Contribuintes do ICMS e no SINTEGRA passará de ativo para não habilitado por motivo de suspensão ou cassação resultante de atos presumíveis de conluio com o emitente. Tudo isso em patente quebra de lógica, considerando, em uma situação de boa-fé do adquirente, que o real infrator é o emitente.

Daí concluirmos que a súmula 509 do STJ veio em boa hora, mas em razão da redação infeliz de grande parte dos dispositivos de regulamentos e portarias, que confunde os enquadramentos e responsabilidades, e em função das particularidades de cada caso concreto, é possível perceber o quanto de demanda ainda haverá em primeira instância.

Só em janeiro deste ano mais de cem mil empresários tiveram suas inscrições estaduais suspensas ou cassadas no Estado de São Paulo (informações extraídas dos Diários Oficiais do Estado de 10/01, 18/01 e 29/01/14).

Pensando que por trás desse número, exemplificado somente em um mês de um só ente da Federação, pode estar uma declaração de inidoneidade fiscal viciada, certamente teremos muito trabalho pela frente. Afinal, o que é “situação regular perante o Fisco” e como cumprir seus requisitos, de acordo com os regulamentos do ICMS e suas portarias? Essas são apenas algumas das várias questões que circundam o tema da inidoneidade fiscal no âmbito do ICMS. Como dito, a súmula 509 do STJ é louvável, mas representa apenas o começo de um longo debate.

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