Artigo produzido no âmbito das pesquisas desenvolvidas no Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da Direito GV. As opiniões emitidas são de responsabilidade exclusiva de seus autores.
Assistimos no Brasil a uma crise do poder do Estado no seu papel de gerir e defender os direitos do cidadão. Quando a mensagem do Estado é de que nada o moverá de suas intenções, estamos diante de uma forma de tirania. E se as portas estão fechadas para o diálogo, ideia tão bem representada na parábola do porteiro de O Processo, de Franz Kafka, os confrontos deixam de ser entre as pessoas contra poder vigente ou autoridades, e se configuram como conflitos de pessoas contra pessoas, do povo contra o próprio povo, como assistimos na ação dos justiceiros de rua recentemente no Brasil.
A nova forma de tirania é a corrupção na aplicação da lei. A corrupção atua como uma autoridade intangível e arbitrária que afasta o cidadão comum do acesso à legalidade e do direito a expressar-se.
Assim como “Cronos”, símbolo do pai conservador e tirânico que temia ser destronado e, para tanto, devorava os próprios filhos, a própria criatividade e possibilidade de progresso; também a consciência coletiva contemporânea, com a queda da soberania das instituições patriarcais (o Estado, a família, a lei) hoje destituídas da posição de referência ética, padece de uma dissociação misteriosa ou de uma associação ainda não compreendida entre o anseio de um bem ou de um gozo absoluto e uma prática de um mal que subordina a lei a desejos egoístas. Estamos diante de uma orientação patriarcal disfuncional que desrespeita a alteridade. Se na sociedade patriarcal convivíamos com padrões de regras e rigores pré-estabelecidos, hoje o diálogo das diferenças é nosso desafio: o conflito criativo.
Vivemos uma crise de nossas instituições na contemporaneidade. Manifestações populares clamam em diferentes cantos do mundo por justiça social e verdadeira democracia. Em todas as manifestações populares ocorridas recentemente no Brasil os órgãos oficiais foram rechaçados, tal como a mídia oficial e as lideranças formais, transferindo-se, finalmente, para a rede informal o debate sobre tais acontecimentos. Há hoje, uma evidente e profunda descrença nas instituições tradicionais cuja natureza é hierárquica e autocrática.
A psicologia pode contribuir para abordar as “deformidades” na aplicação da lei no âmbito do sistema tributário brasileiro. O tema das “autoridades intangíveis e arbitrárias”, bem trabalhado por Modesto Carone no posfácio da obra Carta ao pai, de Franz Kafka (1991), serve perfeitamente para promover o diálogo entre direito e psicologia. A carta de Kafka nunca foi entregue ao pai, e seja este pai pessoal ou institucional, na ausência de diálogo, muitas palavras ficarão presas na garganta. O tema do pai autoritário arquetípico está também presente na obra de Kafka O processo pela imagem da acusação misteriosa feita ao Sr. Joseph K. O clima de mistério diante de perguntas não respondidas apresenta um sujeito impedido de consciência e de participação na construção da lei e nas deliberações que envolvem sua vida. A autoridade intangível e arbitrária é aqui representada pelo vazio de papel proposto à instituição jurídica por um Estado omisso.
Do ponto de vista político, a crítica da obra kafkiana, que certamente nunca perdeu o caráter inovador, recai exatamente sobre a falta de transparência no aparato burocrático do Estado. Para essa tarefa faz-se necessário ouvir a voz do “outro”, que liberta o sujeito de sua alienação narcísica, colocando-o a par dos conflitos de interesse presentes, tanto na disputa pessoal quanto institucional. O Estado e a instituição jurídica devem sentar-se ao divã em que somos todos analistas. Dessa perspectiva, torna-se legítimo questionar a convencional fronteira entre público e privado, político e pessoal, e, dessa forma também, entre psicologia e política.
Trago aqui a visão de Castells de que é a socialização da informação que permite a cada indivíduo a construção dos próprios significados, tornando-o capaz de interferir nas relações de poder. O projeto de transparência fiscal por meio da proposta de socialização da informação interfere de forma revolucionária nos mecanismos que alienam o sujeito dos processos e decisões tomadas por órgãos oficiais e governamentais.
O sujeito que se perdeu de sua dimensão ética é, na obra O Processo, o funcionário público capaz de cometer atrocidades e arbitrariedades em nome de um bem supremo representado pelo poder do Estado ou da instituição jurídica injustificadamente identificados com o divino. De outro lado, o senhor K, sujeito privado do seu direito de pensamento crítico e de consciência, vive uma dissociação, como o neurótico, identifica-se com um mal absoluto. É capaz de, movido pelo sentimento de culpa inconsciente devido a um crime que o acusam de ter cometido, entregar-se, ao fim, à própria aniquilação.
Enfim, é no símbolo da transparência (individual e coletiva), alvo necessário à democracia, que desponta uma nova ética que se constrói junto à identidade do sujeito: a ética da alteridade. Não há separação aqui entre psicologia, psicanálise e política. A liberdade do sujeito está vinculada à possibilidade de se interrogar sobre e de entender os motivos de sua alienação. Devemos trazer, então, nosso paciente, sociedade global contemporânea e suas novas circunstâncias jurídicas, éticas e políticas, para um “divã coletivo”, quer-se dizer, sujeitá-la à fria e implacável análise de uma equipe multidisciplinar.
Celia Brandão é psicóloga pela Universidade de São Paulo, membro analista e docente da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA/SP) e membro analista da International Association Analytical Psychology (IAAP).
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 3 de abril de 2014