Política Criminal do Porrete

Para enfrentar e controlar a criminalidade (que jamais será extirpada da face da Terra) existem diversos modelos de política criminal. Alguns são repressivos (puramente reativos), outros são preventivos. Os países de capitalismo avançado, distributivo e civilizado, fundado na educação de qualidade para todos (Dinamarca, Finlândia, Japão, Canadá etc.), combinam os dois, priorizando nitidamente a prevenção (melhor prevenir o delito, que remediar). Dentre os programas punitivos, dois se destacam: (a) o do marquês de Beccaria (desenhado em 1764, na sua famosa obra Dos delitos e das penas), que consiste na imposição da pena mais suave possível, mas que seja rápida, certa e infalível; (b) o do porrete (nada de prevenção, tudo de repressão, normalmente irracional e desproporcional; em virtude da seletividade, poucos são pegos, mas quando pegos são massacrados, para gerar exemplaridade).

 

A política criminal brasileira, atrelada ao nosso capitalismo selvagem, extrativista e retrógrado (que em nada se assemelha ao capitalismo civilizado distributivo), sempre foi a do porrete (punições rigorosas, muitas vezes desequilibradas; pega poucos, mas pega “exemplarmente”). Os Códigos Penais de 1830 e 1890, suavizando as penalidades, foram exceções. Toda política criminal latino-americana, aliás, é do porrete, ressalvadas raríssimas iniciativas no sentido humanista (beccariano). O presidente do parlamento venezuelano (Cabello), opositor de Maduro, está na TV diariamente, em horário nobre, exibindo um porrete “para massacrar os opositores”. Nada inusitado, quando se sabe que vários midiáticos aqui no Brasil já fizeram ou fazem a mesma coisa. O sucesso do porrete (físico ou linguístico, do tipo sheherazadiano) é minoritário, mas incontestável, porque seria (a psicanálise explica) o instrumento fálico dos machos impotentes assim como das fêmeas frustradas por não tê-lo.

 

A nossa luta por um Brasil decente e civilizado passa por conhecer bem a nossa história e, nela, a história da política do porrete, desencadeada pelo povo velho europeu (lusitano, especialmente) contra o povo novo (índio, negro, branco pobre e suas misturas genéticas, germinadoras dos “brasileiros”), para produzir riquezas exportáveis (parasitismo), por meio da violência, do extrativismo, do escravagismo, do saque, do roubo, do massacre e do extermínio. Nossa colonização foi uma máquina de gastar (torrar) gente: exterminadora, sanguinária, classista, racista, etnicista, desumana e cruel. A política criminal impregnou-se desse espírito, simbolizado falicamente no “porrete”.

 

A classe dominante, proselitista do capitalismo ultrasselvagem (que se opõe frontalmente ao capitalismo evoluído e distributivo), sempre apelou para a violência, a repressão e a força, como arma de construção do país. Aqui brilham pela ausência movimentos sociais capazes de promover o progresso por meio da conciliação, do diálogo e do acordo. Daí a miséria em que nos encontramos.

Opositor organiza ou participa de protestos na Venezuela: porrete nele. Disputa eleitoral e, especialmente, campanha presidencial no Brasil: porrete no adversário. Nos protestos de junho a PM atordoada achou a “solução” para a desordem: porrete nos manifestantes e jornalistas. A PM entrou no Carandiru e desceu o porrete nos presos (resultado: 111 mortos). Daí nasceu o PCC, que tem uma receita: porrete na PM (mais de 100 mortos em 2012, em SP).

 

Em um ano, mais de 100 jornalistas foram agredidos e seis foram mortos no Brasil: porrete neles! Ônibus: incêndio neles (porrete incandescente). Os vândalos “black blocs” saem com porrete na mão (destruindo, quebrando e arrebentando tudo). Disputa de guangues dentro dos presídios: porrete nos inimigos, que culmina com a decaptação. Presidente do STF vai a solenidade do Congresso Nacional: porrete gestual nele. Negrinho “suspeito” é encontrado na rua: porrete nele (com “direito” de amarrá-lo no poste).

 

De porrete em porrete o Brasil vai retrocedendo em sua civilização. Gaudêncio Torquato afirmou: “Os atos de desrespeito, deboche e humilhação espalham-se nas cercanias do império da desordem e da anomia que se alastra no País” (Estadão 16/2/14, p. A2). Qual a solução para essa desordem e anomia?

 

Eu não apostaria no marxismo, nem no socialismo e muito menos no fascismo ou nazismo, nem no esquerdismo nem no direitismo, fanatismo ou fandamentalismo: não há outra saída que não seja a já encontrada (embora com dificuldades, avanços e retrocessos) pelos países do capitalismo evoluído e distributivo (Dinamarca, Islândia, Noruega, Coreia do Sul, Japão, Canadá, Suécia, Suíça, Áustria, Alemanha, Austrália etc.), ancorado (a) na educação de qualidade para todos, (b) no ensino da ética (respeito a todas as pessoas, à natureza, aos animais e ao bom uso da tecnologia), (c) no império da lei e do devido processo legal e proporcional e (d) na alta renda per capita para os trabalhadores. São esses os antídotos para a violência.

 

Prova disso é o IDH (índice de desenvolvimento humano) da ONU: os 47 países mais desenvolvidos (educação, longevidade e renda per capita) contam com a taxa de 1,8 mortes intencionais para cada 100 mil pessoas. O Brasil, em 2011, fechou o ano com 27,1 assassinatos para cada 100 mil. O que está nos faltando: educação, ética, império da lei e do devido processo e melhora (mais ainda) na renda per capita. Em síntese, para acabar ou amenizar nosso apartheid, necessitamos de uma reordenação socioeconômica. O capitalismo selvagem, extrativista e parasitário (que nada tem a ver com o capitalismo evoluído) não pode mais se valer do “porrete” para manter seus velhos privilégios. E o ideal é que tudo isso fosse feito sem convulsão social. Já se jorrou muito sangue no solo brasileiro!

 

Fonte: LUIZ FLÁVIO GOMES / Jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil.

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