A lei 9.613/98 (Lei de lavagem de capitais), com alterações pela Lei 12.683/2012.

ORIGEM DO TERMO: Segundo Gustavo Henrique Badaró o termo lavagem de dinheiro (“money loundering”) foi empregado inicialmente pelas autoridades norte-americanas para descrever o método usado pela máfia nos anos 30 do século XX para justificar a origem dos recursos ilícitos: a exploração de máquinas de lavar roupas. A expressão foi usada pela primeira vez em um processo judicial nos EUA em 1982, e a partir de então ingressou na literatura jurídica e em textos normativos nacionais e internacionais.

CRÍTICAS AO TERMO “BRANQUEAMENTO”: Portugal, Espanha e França adotam o termo “branqueamento” para fazer referência à lavagem de capitais. Em razão da conotação racista do termo branqueamento, o Brasil preferiu optar pelo termo lavagem de capitais, conforme justificado na Exposição de Motivos do texto da primeira lei sobre lavagem de dinheiro: EM 692/MJ/19996- item 3.

ÂMBITO INTERNACIONAL: Está ligada à Convenção das Nações Unidas contra o tráfico de drogas celebrada no ano de 1988 na cidade de Viena. Os países signatários da referida Convenção entenderam que é impossível combater o tráfico de drogas se não combater o dinheiro que o tráfico de drogas pode gerar. A referida Convenção foi ratificada pelo Brasil pelo Decreto 154/91, comprometendo-se o Brasil, portanto, a punir e a reprimir a lavagem de capitais.

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CONCEITO DE LAVAGEM DE CAPITAIS: Segundo o professor Rodolfo Tigre Maia, lavagem de capitais é o conjunto complexo de operações integrado pelas etapas de conversão, dissimulação e integração de bens, direitos ou valores, que tem por finalidade tornar legítimos ativos oriundos da prática de ilícitos penais, mascarando esta origem, para que os responsáveis possam escapar da ação repressiva da justiça.

A lavagem de capitais é a atividade consistente na desvinculação ou afastamento do dinheiro de sua origem ilícita, para que possa ser aproveitado.

PRESSUPOSTO PARA A INCIDÊNCIA DO CRIME EM ESTUDO: existência de, pelo menos, uma infração penal antecedente, que gere lucro. Por isso alguns denominam de crime parasitário, assim como ocorre com relação ao crime de receptação.

A lavagem de capitais não é exaurimento do crime antecedente. Se assim o fosse, ela seria um post factum impunível ou talvez uma causa de aumento de pena do delito antecedente.

A lavagem é um crime autônomo, possibilitando que o autor ou partícipe do ilícito penal antecedente pratique a lavagem também, respondendo em concurso material. Nada impede, portanto, que o sujeito ativo que figurou no crime antecedente seja também sujeito ativo do crime de lavagem de capitais.

Nesse ponto, distingue-se a lavagem da receptação e do favorecimento real. Lembrando que a receptação é um crime patrimonial e que o favorecimento real é um crime contra a administração da justiça.

A lavagem assemelha-se aos crimes de receptação e de favorecimento real, pois de um lado tem caráter patrimonial e quer nessa conduta dificultar a ação repressiva da justiça.

Quem lava pode ser concorrente do delito antecedente em concurso material de crimes.

Já o receptador não pode ser coautor ou partícipe no crime antecedente, assim como o agente que pratica favorecimento real.

O processo e julgamento do crime de lavagem de capitais independe do processo e julgamento da infração penal antecedente, inexistindo relação de prejudicialidade, conforme dispõe o artigo 2º, II, lei 9.613/98.

De acordo com o parágrafo 1 º, artigo 2 º, lei 9.613/98, a denúncia será instruída com indícios suficientes da existência da infração penal antecedente (desnecessária a prova robusta), sendo puníveis os fatos ainda que o autor da infração antecedente seja desconhecido.

Assim, é forçoso concluir que o crime de lavagem de capitais guarda autonomia processual, bem como guarda autonomia quanto ao crime em si, e a responsabilidade dos autores do crime de lavagem de capitais é totalmente independente da responsabilidade das infrações penais antecedentes.

Conforme bem lembra Ricardo Antônio Andreucci (2013): “nos crimes previstos nesta lei, deve o representante do Ministério Público trazer cópias do processo envolvendo o ilícito penal em que o agente da lavagem foi o próprio autor ou beneficiário”.

GERAÇÕES DE LEIS DA LAVAGEM DE CAPITAIS:

De acordo com o professor Renato Brasileiro (Legislação Criminal Especial – 2009) elenca-se três gerações de leis de lavagem de capitais.

1ª geração: As primeiras leis que incriminaram a lavagem de capitais traziam apenas o tráfico ilícito de drogas como crime antecedente, razão pela qual ficaram conhecidas como legislação de primeira geração.

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2ª geração: Há uma AMPLIAÇÃO no rol de crimes antecedentes, porém este rol é taxativo (“numerus clausus”). É o que ocorria com a lei brasileira até o advento da lei 12.638/2012. A lei brasileira de lavagens, portanto, abandonou o critério do rol taxativo dos crimes antecedentes com o advento da referida lei.

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3ª geração: Considera que QUALQUER crime pode figurar como delito antecedente da lavagem de capitais. Este sistema é adotado na França somente com relação a qualquer crime grave. Já na Argentina qualquer crime pode figurar como infração precedente. O Brasil, com o advento da lei 12.638/2012 passou a se enquadrar como lei de 3 ª geração, adotando o sistema Argentino, pois inclusive contravenções penais podem figurar como infração penal antecedente do crime de lavagem de capitais.

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Na figura do caput do artigo 1º da lei 9613/98, parte-se do pressuposto da existência da infração penal antecedente, sendo o delito de lavagem acessório.

O rol taxativo do artigo 1 º da lei 9.613/98 foi revogado pela lei 12.683/2012.

Um dos grandes defeitos das leis de segunda geração dava-se pelo fato da dificuldade de se demonstrar que o autor recebeu um dinheiro proveniente de algum dos crimes antecedentes descritos no rol taxativo. A leis de lavagem de terceira geração não enfrentam este problema, pois é muito mais fácil condenar o acusado, demonstrando que o acusado sabia que o dinheiro era “sujo”(proveniente de origem ilícita), sem necessidade de provar que ele sabia a origem do capital.

ATENÇÃO: Para o STF não há necessidade de um vulto assustador de quantias envolvidas, nem tão pouco de complexidade de operações para se configurar o crime de lavagem de capitais.

ETAPAS DA LAVAGEM DE CAPITAIS:

1 ª etapa – Conversão (sinônimos: colocação, ocultação, introdução ou placement): Consiste no afastamento, na separação física do dinheiro dos autores dos crimes antecedentes sem a ocultação da identidade dos titulares. Ocorre a separação do dinheiro da sua fonte ilegal. Normalmente, movimenta-se o dinheiro em pequenas quantias para diluir ou fracionar as grandes somas (denominada de técnica smurfing). Exemplo: Compra de vários bens imóveis e investimentos no mercado imobiliário com o dinheiro oriundo do tráfico de drogas.
É a fase mais fácil de se combater o delito, pois os valores ou bens estão mais próximos da sua origem.

2 ª etapa – Dissimulação (layering, controle ou estratificação – empilage): Consiste na lavagem propriamente dita, em que o sujeito multiplica as operações anteriores, tendo como objetivo a não identificação da origem ilícita. O objetivo, aqui, segundo Ricardo Antônio Andreucci, é afastar o máximo possível o dinheiro de sua origem ilegal, através de múltiplas transações. Exemplo: A revenda de um bem imóvel comprado com o dinheiro do tráfico, assim como a transferência do dinheiro para diversas contas bancárias.

3ª etapa – Integração (integration ou recycling): O agente figura no mercado formal como investidor, empresário, empregando dinheiro em negócios lícitos ou na compra de bens. Segundo Ricardo Antônio Andreucci é a fase final e exaurimento da lavagem de dinheiro, em que o agente cria explicações legítimas para os recursos, aplicados, agora de modo aberto, com investimentos financeiros ou compra de ativos (ouro, ações, veículos, imóveis etc) – podem surgir as organizações de fachada. Podem surgir bilhetes premiados.

BEM JURÍDICO TUTELADO: O tema é divergente. Mas iremos apontar somente a corrente majoritária adotada pelo STF e STJ  O crime é pluriofensivo, pois, em um primeiro plano, o crime de lavagem atinge a administração da justiça, por tornar difícil a recuperação dos produtos do crime e, secundariamente, o sistema financeiro nacional e a ordem econômico-financeira são atingidos. Esta posição foi exteriorizada pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli no caso mensalão (Ação Penal 470) nos seguintes termos: “O crime de lavagem é pluriofensivo, é uma proteção a toda a sociedade de uma maneira em geral”.

SUJEITO ATIVO: qualquer pessoa (crime comum), inclusive aquele que concorreu para o delito antecedente.

Inquérito 2.471, do Pleno STF: “não é inepta a denúncia por crime de lavagem de dinheiro e formação de quadrilha ou bando que, em vista de diversos agentes supostamente envolvidos, descreve os fatos de maneira genérica e sistematizada, mas com clareza suficiente que permita compreender a conjuntura tida por delituosa e possibilite o exercício da ampla defesa”. Trata-se da denúncia apelidada pelo STF e pelo STJ de “mais ou menos vaga”.

Existem crimes em que o esquema é tão complexo (como ocorre com o crime de lavagem de capitais) que muitas vezes o Ministério Público no início da ação penal não tem a pormenorização dos comportamentos praticados, o que permite que o Ministério Público ofereça denúncias genéricas e sistematizadas, desde que se possa compreender a conjuntura criminosa a ponto de permitir o exercício da ampla defesa.

Pessoa Jurídica pode ser responsabilizada penalmente por crimes de lavagem de dinheiro? Resposta: Pessoa Jurídica ainda não pode ser responsabilizada penalmente pelo crime de lavagem de capitais. Hoje só temos permissivo legal, com base na Constituição, para responsabilizar penalmente a pessoa jurídica na lei de crimes ambientais (lei 9605/98). Há quem entenda que o artigo 173, § 5º da CF/88 autoriza a responsabilidade penal de pessoas jurídicas em crimes contra a ordem econômica (e a lavagem de capitais é crime contra a ordem econômica), só que a nossa lei de lavagem não define sanções penais para pessoas jurídicas. Então, quando houver utilização de pessoa jurídica como fachada para a lavagem de capitais, ela não poderá ser atingida na esfera penal, embora possam haver sanções administrativas, desconsideração da personalidade para atingir seu patrimônio etc.

SUJEITO PASSIVO DO CRIME DE LAVAGEM: Estado, a coletividade e secundariamente o particular prejudicado.

TIPO OBJETIVO (LAVAGEM PRIMÁRIA OU DIRETA):

O tipo do artigo 1º, caput da lei 9613/98 traz dois verbos, quais sejam:
I- ocultar;
II- dissimular.

Art. 1o Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)

Verbo “ocultar” – significa esconder, impedir ou dificultar a localização. É a conversão (primeira etapa da lavagem de dinheiro).

Verbo “dissimular” – há o fracionamento de operações, a fim de que o rastro do dinheiro seja despistado.

O tipo é misto alternativo, ou seja, pode o agente cometer uma única conduta ou mais de uma e concretiza o delito.

Guilherme de Souza Nucci ilustra muito bem com seguinte exemplo: “ocultar um bem e dissimular a origem de outro valor qualquer = um só delito. Entretanto, é preciso estar no mesmo contexto. Se ocultar valor proveniente do tráfico, em determinada época, para , mais tarde, dissimular a origem de valor advindo de extorsão mediante sequestro, comete dois delitos, podendo-se inclusive, discutir se concurso material ou crime continuado”.

Na jurisprudência – STJ: “I. O mero proveito econômico do produto do crime não configura lavagem de dinheiro, que requer a prática das condutas de ocultar ou dissimular. Assim, não há que se falar em lavagem de dinheiro se, com o produto do crime, o agente se limita a depositar o dinheiro em conta de sua própria titularidade, paga as contas e consome os valores em viagens e restaurantes. II- no caso dos autos, entretanto, os valores foram alcançados ao suposto prestador de serviços de advocacia e, depois, foram simuladamente emprestados a empresas de titularidade de um dos denunciados. Sendo assim, a ocultação da origem reside exatamente na simulação do empréstimo, que não seria verdadeiro, porque, na verdade, o dinheiro já pertenceria, desde o início, ao denunciado, responsável pela venda da decisão judicial, com a colaboração de outro denunciado”(APn 458-Sp, C.E, rel. Fernando Gonçalves, 16.09.2009, v.u.).

CONSUMAÇÃO: A figura do caput, artigo 1º, lei 9.613/96, segundo parte da doutrina é crime material, pois o crime se consuma com a efetiva ocultação ou dissimulação. Já o STF entende que o crime é formal, por prever o resultado, mas não exigir a efetiva ocultação ou dissimulação. Luis Regis Prado entende que se trata de crime de mera conduta (esta última posição foi adotada pela banca CESPE).

Em tese, é cabível tentativa, a depender da possibilidade de fracionamento da execução no caso concreto.

TIPO DERIVADO (LAVAGEM SECUNDÁRIA OU PARALELA):

Os § 1º e § 2º , artigo 1 º da lei 9613/98 é tipo derivado (meio de lavagem).

Artigo 1 o , § 1o Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal: (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)

I- os converte em ativos lícitos (fase da conversão – placement) – Este comportamento é daquele que colabora ou negocia com o lavador de capitais, podendo ser inclusive o próprio lavador de capitais sujeito ativo deste delito, conforme Guilherme de Souza Nucci.

II – os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere (dissimulação) – Há aqui diversas operações de forma consciente com o fim de ocultar ou dissimular a utilização dos bens, direitos ou valores provenientes da infração antecedente. Não se admite a forma culposa.

III – importa ou exporta bens com valores não correspondentes aos verdadeiros – Pode ocorrer aqui um superfaturamento (lucro) ou subfaturamento (prejuízo) de mercadorias para o fim de acarretar prejuízo para quem quer lavar o dinheiro. De acordo com Guilherme de Souza Nucci, cuida-se de elemento normativo do tipo, vale dizer, de valoração cultural a depender, pois das circunstâncias que envolvem o negócio, em determinada época.

A NOVA REDAÇÃO DO INCISO I DO § 2º DO ARTIGO 1 º DA LEI DE LAVAGEM E A TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA (TEORIA DAS INSTRUÇÕES DO AVESTRUZ)

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Artigo 1 o § 2o Incorre, ainda, na mesma pena quem: (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)

I – utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração pena (reciclagem) ; (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)

De acordo com Gustavo Henrique Badaró, a intenção do inciso I , § 2 o do artigo 1 o parece ter sido tipificar as condutas da terceira etapa do ciclo de lavagem de dinheiro, ou seja, a integração dos bens na economia lícita, após a ocultação ou dissimulação.

No plano subjetivo a nova redação do inciso I , § 2 o do artigo 1 o da lei de lavagem traz uma novidade com relação à anterior. Naquela, o termo “saber a procedência” constava do tipo penal (veja-se redação anterior: “utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo”). O dispositivo indicava expressamente o dolo direto. A nova redação suprime a referência ao conhecimento da origem infracional do bem (Gustavo Henrique Badaró – 2012).

A supressão da expressão “que sabe” teve o claro objetivo de agregar a punição pelo dolo eventual no caso de uso de bens de origem suja. Ou seja, o legislador estendeu a tipicidade àquele que suspeita da proveniência infracional dos bens, e ainda assim os utiliza na atividade econômica ou financeira, assumindo o risco de praticar lavagem de dinheiro (Gustavo Henrique Badaró – 2012).

Ao contrário do tipo penal do caput, sem qualquer referência ao tipo subjetivo desde sua acepção original, o dispositivo em comento previa exclusivamente o dolo direto, ora suprimido – como mencionado – com a expressa intenção de admitir a forma do dolo eventual. Ainda que não pareça a melhor técnica legislativa, porque, como indicado, nos crimes em que se exige o conhecimento de uma situação / condição prévia admissão do dolo eventual é sempre expressa no tipo penal, houve aqui –ao contrário do que ocorre no caput – um movimento legislativo para a inclusão do dolo eventual. Por isso, parece que a restrição existente no caput, que, a nosso ver, só admite o dolo direto, não existe para o parágrafo segundo em estudo(Gustavo Henrique Badaró).

Aqui ingressa-se no campo de uma discussão atualíssima, que é a Teoria da Cegueira Deliberada ou das Instruções do Avestruz, que afirma o seguinte: atua dolosamente aquele que preenche o tipo objetivo ignorando algumas peculiaridades do caso concreto, por ter se colocado voluntariamente numa posição de alienação diante de situações suspeitas, procurando não se aprofundar no conhecimento das circunstâncias objetivas.

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Em novembro de 2012 foi discutida a teoria da cegueira deliberada no caso do mensalão, em que houve uma divergência parcial entre o Ministro Gilmar Mendes e o Ministro Celso de Mello.

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Gilmar Mendes entendeu que o delito em estudo exigiria dolo direto, mas seria possível verificar o dolo direto a partir dos elementos objetivos com contexto fático, até porque o contexto em questão era discutir o valor que teria sido depositado na conta da esposa de um deputado federal envolvido no esquema delituoso. Gilmar Mendes entendeu no caso concreto que as circunstâncias fáticas de a esposa conviver com o deputado federal e a vultuosa quantia depositada na sua conta bancária demonstraria o dolo direito.

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Já o Ministro Celso de Mello fez aplicação da teoria da Cegueira Deliberada ao presente caso, pois mesmo não tendo certeza da origem daquele dinheiro, ela assumiu o risco de se envolver em um esquema de lavagem de capitais.

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A teoria da cegueira deliberada era até então pouco aceita, até porque ela não tem previsão expressa. E a doutrina resistia muito a sua aplicação, sobretudo por conta de responsabilidade penal objetiva no nosso sistema penal.

A teoria da cegueira deliberada imputa o crime em razão da assunção de um risco.

A barreira de aplicação da teoria da cegueira deliberada é o erro de tipo (artigo 20 do Código Penal), pois se há ignorância do elemento do tipo, apesar de realiza-lo objetivamente, resta prejudicado o dolo, haja vista que o erro de tipo exclui o dolo. Ora, se a consciência é equivocada a vontade é viciada. Se não houver compreensão perfeita do tipo penal em razão de uma falsa representação ou confusão dos objetos que compõe o tipo penal ou se ignorar esse elementos há nítido erro de tipo. Exemplo: alguém pede para que Mévio guarde um pacote com erva medicinal. A polícia vai até a casa de Mévio, e este franqueia a entrada da polícia, e esta encontra o pacote e constata que é droga. Tendo em vista que não se admite a forma culposa, Mévio ficará sem punição.

A doutrina (a exemplo de Guilherme de Souza Nucci) afirmava que, para que houvesse a prática dos delitos em comento, seria necessário o dolo direto, pois o agente tem que saber serem os valores utilizados provenientes dos crimes antecedentes.

Visa a referida teoria imputar o agente o comportamento de lavagem de capitais a título de dolo eventual, pois aquele que não busca saber a origem do dinheiro assume o risco de praticar o delito.

Outro exemplo: os agentes praticam um grande furto e compram posteriormente em uma agência dezenas de veículos à vista em dinheiro – caso do Assalto ao Banco Central. À luz da teoria, o vendedor dos carros teria praticado lavagem de dinheiro, por não ter buscado saber a procedência do dinheiro.

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A Teoria da Cegueira Deliberada é consagrada na jurisprudência norteamericana e vem sendo incorporada a algumas lei europeias.

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Importante frisar (ainda que de maneira tautológica) que não era cabível sua aplicação na redação anterior da lei de lavagem de capitais brasileira, especialmente nos casos dos parágrafos 1º e 2 º do artigo º da lei 9.63/98, que exigiam o dolo direto, apesar de alguns autores serem favoráveis à aplicação, principalmente nos casos do caput.

MODALIDADE ESPECIAL DE QUADRILHA (INCISO II DO § 2º DO ARTIGO 1 º DA LEI DE LAVAGEM)

Artigo 1 o § 2o Incorre, ainda, na mesma pena quem: (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)

II- participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos nesta lei.

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No inciso II, há uma modalidade especial de quadrilha, porque há necessidade de concurso e dolo direto. Este delito é autônomo em relação à lavagem, cabendo concurso material entre as condutas para aquele que faz parte do grupo de forma estável e que também executa as condutas de lavagem anteriormente descritas.

Exemplo: Mévio trabalha em um escritório de advocacia, e ele sabe que o escritório é uma fachada para lavagem de capitais (deve haver conhecimento do esquema de lavagem para responder pelas condutas de lavagem e por esta figura autônoma ora estudada).

Salienta-se que por ser esta figura especial ela prevalece com relação a figura do artigo 288 do Código Penal.

Se houver um grupo formado de mais de 3 pessoas, associados de forma estável para praticar diversos crimes (a exemplo: corrupção ativa, corrupção passiva, tráfico de influências etc) e houver também dentro deste esquema a prática de lavagem de capitais, poderá responder pela quadrilha (que é genérica), e não se responderá pela figura especial ora em estudo, já que essa associação não é dedicada necessariamente à lavagem de capitais.

ATENÇÃO: O STF ainda não tem uma definição se o crime de lavagem é permanente ou instantâneo de efeitos permanentes (Inquérito 2.471, STF).

Alguns entendem ser crime permanente (exemplo: ocultar) e a prescrição só começaria a correr quando cessada a permanência, além de ser cabível prisão em flagrante e se aplicável a lei penal mais gravosa que entre em vigor enquanto ainda não cessada a permanência (em função da súmula 711, STF).

No entanto, para os que entendem ser o crime instantâneo de efeitos permanentes, a consumação é pontual e os efeitos se prolongam no tempo, iniciando-se a prescrição a partir de então, não havendo que se falar em flagrante e aplicar-se-á a lei da época, salvo se posterior mais favorável.

ADMISSÍVEL TENTATIVA NOS CRIMES DE LAVAGEM

Pune-se a tentativa, aplicando-se a regra geral do artigo 14, parágrafo único do Código Penal, mesmo que se entenda ser o crime de mera conduta, desde que seja possível fracionar a execução do delito.

Reza o § 4º do artigo 1º da lei 9.613/1998 (lei de lavagem de capitais), com redação alterada pela lei 12.683/2012:

“A pena será aumentada de um a dois terços, se os crimes definidos nesta Lei forem cometidos de forma reiterada ou por intermédio de organização criminosa (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012).

A redação antiga  trazia:

 § 4º A pena será aumentada de um a dois terços, nos casos previstos nos incisos I a VI do caput deste artigo, se o crime for cometido de forma habitual ou por intermédio de organização criminosa.

 

Como bem aponta Guilherme de Souza Nucci (2013): “a causa de aumento de pena cuida-se de circunstância do crime, vinculada à tipicidade, obrigando-se o juiz a elevar a pena na terceira fase de sua aplicação (ver artigo 68 do Código Penal)”, claro que se cabível o referido aumento.

Pela simples leitura do novo dispositivo e do seu antecessor, verifica-se, no que tange ao quantum do aumento da pena, que não houve qualquer alteração, continuando a sua variação sendo de 1/3 a 2/3.

Em um primeiro momento, em uma leitura comparativa desatenta do antigo e do novo dispositivo em comento, poder-se-ia levar a equivocada percepção de que a nova redação trazida pela lei 12.683/12 não trouxe novidade alguma.

Note-se que a redação antiga previa o aumento em casos de “habitualidade”. Agora, com a nova redação, fala-se em “reiteração criminosa”.

Símbolo de repetir (reiterar)

Símbolo de repetir (reiterar)

A doutrina foi totalmente silente acerca dos efeitos da referida alteração nas obras de 2013, a exemplo de Guilherme de Souza Nucci e Ricardo Antônio Andreucci (que possuem as melhores obras de legislação penal especial do mercado), limitando-se a trazer somente o texto da lei e alguns apontamentos, data venia, superficiais.

A referida modificação foi muito bem abordada pelo livre-docente em direito processual penal pela USP Gustavo Henrique Badaró e pelo doutor em direito penal pela USP Pierpaolo Cruz Bottini na obra “Lavagem de Dinheiro – aspectos penais e processuais penais” (2012), que aponta que se deve “interpretar o novo texto como uma dispensa da comprovação da habitualidade para a causa de aumento, caracterizada como repetição usual da prática criminosa, que revela um estilo de vida do agente, voltado àquele delito”.

Assim, basta verificar que o agente praticou mais de uma lavagem de dinheiro, sem demonstrar que o fez/faz como um estilo de vida (ou seja, sem necessidade de averiguação da habitualidade), para incidir a nova causa de aumento de pena.

Entendemos que a expressão “de forma habitual” era dúbia e confusa, pois dava a falsa impressão de que se trataria de crime habitual. Aliás, Renato Brasileiro, na obra coletiva Legislação Criminal Especial (2009) de Coordenação de Luiz Flávio Gomes e Rogério Sanches Cunha, conclui ao analisar a antiga redação que:

“a habitualidade não é uma elementar do tipo de lavagem, como acontece em outros crimes, como o exercício ilegal de medicina, arte dentária ou farmacêutica (artigo 282 do CP). O §4º (em sua redação antiga) traz a figura da habitualidade criminosa, a reiteração delituosa, ou do criminoso habitual, conceito este que não se confunde com crime habitual. Enquanto no crime habitual o delito é único, figurando a habitualidade como elementar do tipo, na habitualidade criminosa há pluralidade de crimes, sendo a habitualidade uma característica do agente, e não da infração penal. No crime habitual a prática de um ato isolado não gera tipicidade, ao passo que, na habitualidade criminosa, tem-se uma sequência de atos típicos que demonstram um estilo de vida do autor, ou seja, cada um dos crimes anteriores já é suficiente de per si para a caracterização da lavagem, sendo que o conjunto de delitos autoriza o aumento da pena”.

Entendemos que a circunstância prevista neste parágrafo 4º não diz respeito à habitualidade imprópria. Na habitualidade imprópria haveria um crime único realizado através de várias operações e várias manobras. E na realidade as etapas da lavagem de capitais podem ser cumuladas e sobrepostas, havendo assim uma pluralidade de crimes. Assim, no momento em que o legislador substitui a expressão “de forma habitual” por “de forma reiterada” dirimiu-se a polêmica, reconhecendo-se uma forma de repetição, ou seja, se o crime de lavagem é praticado de forma repetida (reiterada) teremos a incidência da causa de aumento.

Assim, discordamos do posicionamento de Guilherme de Souza Nucci (2013) que afirma ser a circunstância prevista no parágrafo caso de habitualidade imprópria.

Ainda com relação à reiteração criminosa, o parágrafo em estudo envolve uma polêmica de ordem dogmática muito acentuada. Aliás, como bem apontam Gustavo Henrique Badaró e Pierpaolo Cruz Bottini (2013):

 “a reiteração como causa de aumento gera um conflito aparente de normas com as regras do crime continuado (CP, artigo 71: ‘quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços’)”.

Analisando a lei especial e o artigo 71 do CP verifica-se, portanto, duas causas de aumento distintas aplicáveis à reiteração da prática de lavagem de dinheiro, com majorantes diferenciadas, sendo a causa de aumento do § 4º do artigo 1º da lei de Lavagem mais gravosa (1/3 a 2/3) com relação a do artigo 71 do CP (1/6 a 2/3).

Poderia parecer adequado solucionar o aparente conflito de normas  por meio do critério da especialidade (lex specialis derogat legi generali), e seria caso de prevalecer a causa de aumento da lei de lavagem em detrimento da causa de aumento do artigo 71 do CP.

O ilustre professor Renato Brasileiro é adepto implicitamente ao critério da lei especial, como se pode extrair de suas brilhantes palavras abaixo:

“para a incidência da causa de aumento de pena do § 4º, não se exige uma homogeneidade de circunstâncias de tempo, lugar, modus operandi, tal qual se exige para o reconhecimento do crime continuado”. 

Em posicionamento contrário ao do professor BRASILEIRO, entendem BADARÓ e BOTTINI que esta causa de aumento do § 4º do artigo 1º da lei de lavagem é inaplicável, haja vista que nos casos em que houver nexo de causalidade entre os diversos atos de lavagem de dinheiro aplica-se a regra do crime continuado (CP, artigo 71 – que exige nexo de continuidade pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhante), e no demais – quando não houver o nexo de causalidade – será reconhecida a acumulação própria do concurso material, sem  a aplicação da majorante em respeito ao bis in idem, uma vez que tal operação puniria os diversos fatos típicos cumulativamente e ainda os utilizaria como justificação para a causa de aumento.

BADARÓ E BOTTINI ilustram seus posicionamentos com o seguinte exemplo:

“Imaginemos que o agente pratica dois crimes de lavagem de dinheiro, em concurso material. Em decorrência do primeiro lhe será fixada uma pena de três anos – supondo-se todas as circunstâncias judiciais favoráveis. Pelo segundo, receberá os mesmos três anos – sobre a mesma suposição – com a causa de aumento da reiteração (baseada na reiteração do crime anterior). Isso sem contar a agravante da reincidência que pode incidir nesse caso também. Ter-se-ia a incidência dupla do bis in idem, pois o primeiro crime de lavagem de dinheiro não apenas justificaria a agravante da reincidência (nos casos em que seja aplicável), como também a causa de aumento da reiteração”.

No caso “mensalão” (Ação Penal 470/MG– STF) em meados de outubro de 2012 o tema foi objeto de discussão, e o Plenário do STF sufragou o entendimento de se afastar o aumento do parágrafo 4º do artigo 1º da lei de lavagem quando da aplicação do artigo 71 do Código Penal, para se evitar a ocorrência do bis in idem. O Ministro Marco Aurélio, em voto vencido, divergiu dizendo que nada impede que se apliquem as duas causas de aumento (artigo 71 do Código Penal e §4º do artigo 1º da Lei de Lavagem).

Marco Aurélio

Ministro Marco Aurélio

Veja-se ementa do referido acórdão:

Informativo STF nº 685 – 22 a 26 de outubro, 2012

Ação Penal 470/MG – 154 “mensalão” (Plenário)

Ante o empate na apreciação da dosimetria dos delitos de lavagem de dinheiro (Lei 9.613/98, art. 1º, V e VI), descrito no capítulo IV da denúncia, prevaleceu o voto do revisor, atribuindo-se a pena de 6 anos, 2 meses e 20 dias de reclusão, mais 20 dias-multa. Alinharam-se a esse patamar os Ministros Rosa Weber, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Presidente. Ao revés, os Ministros Luiz Fux, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello seguiram o relator na fixação da reprimenda em 11 anos e 8 meses de reclusão e 291dias-multa. Tanto o relator quanto o revisor decretaram a interdição do exercício de cargo ou função pública, nos termos do art. 7º, II, da lei específica. Determinaram, ainda, a perda dos valores disposta no inciso I deste mesmo preceito. Rejeitou-se o pleito do parquet de reconhecimento do concurso material entre as operações de lavagem por reputar configurada a regra do crime continuado (CP, art. 71). Em virtude disso, afastou-se a habitualidade contida no § 4º do art. 1º da Lei 9.613/98, ao considerar que resultaria em bis in idem. O Min. Marco Aurélio assinalou que não se poderia cogitar de sobreposição. AP 470/MG, rel. Min. Joaquim Barbosa, 22 a 25.10.2012. (AP-470)

A íntegra do acórdão da Ação Penal 470/MG de relatoria do Ministro Joaquim Barbosa melhor explica a emenda retro. Vejamos:

“A acusação, em alegações finais, pede a aplicação da causa especial de aumento de pena prevista no § 4º do artigo 1º da lei 9.613/98 (na redação anterior à lei 12.683/2012), dada “a circunstância de os delitos de lavagem de dinheiro terem sido praticados de forma habitual, haja vista que a denúncia descreveu mais de sessenta episódios consumados ao longo do tempo” (fls. 45.371). Ocorre que a reiteração de condutas configuradoras da lavagem de dinheiro, quando verificada nas mesmas circunstâncias (como se dá no caso), atrai a regra do crime continuado (CP, art. 71). Daí porque, no caso, sob pena de bis in idem, não vejo como aplicar, suplementarmente, a causa especial de aumento de pena descrita no art. 1º, § 4º da Lei 9.613/1998, que se refere à hipótese de o crime em questão ser “cometido de forma habitual”, visto que o disposto no art. 71 do Código Penal já foi aplicado (páginas 6.445/6.446 do acórdão na íntegra)”.

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Assim, ao que nos parece, o STF adotou o entendimento da doutrina de BADARÓ e BOTTINI, inutilizando a referida causa de aumento de pena prevista no § 4 do artigo 1º da lei 9.613/98 no caso da reiteração criminosa, como já exposto.

Com relação à segunda causa de aumento de pena “por intermédio de organização criminosa” tínhamos até antes do advento da recente lei 12.694/2012 uma lacuna descritiva típica do instituto da organização criminosa no ordenamento jurídico brasileiro. E a doutrina e a jurisprudência dividiam-se a respeito do conceito e da tipicidade do instituto. O STF em 2012 disse que a Convenção de Palermo não serviria para definir organização criminosa, pois por ser um instrumento internacional não poderia ser fonte do direito penal. 

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Assim, resolvendo a problemática da lacuna, o conceito de organização criminosa foi trazido pela LEI 12694/2012.

A lei 12.694/2012 definiu organização criminosa como:

A associação de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional.

Para que o aumento da pena seja aplicado, deve-se analisar o conceito supra citado da lei 12.694/2012.

A lei nova criou uma situação mais gravosa, portanto. Como a organização criminosa é um crime permanente, a lei nova que entrou em vigor durante a permanência é aplicável, mesmo que seja mais gravosa. Se a organização criminosa foi desmantelada antes da vigência da lei 12.694/2012 não há que se falar em incidência da majorante em questão, adotando-se o citado entendimento do STF.

Fonte: LFG

 

 

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